sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

sem que

Era uma casa muito parecida com ele: sem paredes nem substância. Vidros de alto a baixo, do chão ao tecto. E uma tendência muito particular à exposição absurda de pormenores sobre a sua vida íntima.

A casa era vazia. Cheia de branco e de luz e de asseio, cheia de coisas, mas vazia. Ele enchia os pulmões para dizer a minha vida é um livro aberto.

Vinha gente de longe para ver a casa. Vinha gente de todos os lados para o ouvir. E ele sentava-se no chão da casa e falava durante horas, inebriado pelo som da própria voz. E ninguém ousava uma palavra e todos o respeitavam. A lei pela sua boca.

Quando as pessoas partiam, ao cair da noite nos jardins de plástico, ao tocar do sino na capela das suas histórias, ele tinha mulheres e amigos e aventuras. Ele precipitava-se sobre a vida para a poder contar.

A casa foi envelhecendo e era um espectáculo triste vê-la envelhecer por dentro. As pessoas vinham ainda de mais longe para o ouvir enrolar as palavras na velhice e na ruína. Tinham ainda mais prazer, agora sem branco, com pouca luz e nenhum asseio.

Mas nunca ninguém presenciou um instante de vergonha, ninguém ouviu um lamento. Até ao fim, a casa não teve cortinas; ele andou nu; e todos vinham comprovar como vivia. E quando a casa caiu e ele morreu, as pessoas tiveram dificuldade em encontrar outra distracção.
Sílvia Otto Sequeira

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