sábado, 21 de fevereiro de 2009

sem 'que' - Carlos Natálio

Um homem persegue uma parede. Ou antes, percorre-a mas sempre com o objectivo de apanhar o pedaço de granito colocado mais à frente. E a parede está na diagonal. Como se o homem nadasse enquanto a preenche com o seu corpo. Passa por jaulas e blocos indistintos de pedra e tudo nos soa a uma odisseia. Está colado à parede como se a sua respiração dependesse do contacto com a dureza da rocha. Os seus movimentos dir-se-iam graciosos se a inclinação não lhe desse a condição de um potencial náufrago. A percorrer um barco, com medo do desíquilibrio, com receio de cair ao mar. O mar esse, como uma inspiração de oxigénio nos pulmões.

Um outro homem, também ele cego, também ele de olhar avisado, escuta-o. Está numa sala cheia de cadeiras, como num cinema mas subterrâneo.

Ambos precisam de sair e ver o mundo

Ambos precisam de se conhecer

Mas se isso suceder o primeiro fará cessar a vida do segundo ou o segundo terá uma suave vontade de lhe corrigir o caminho. O primeiro veste roupa. E branca. O segundo, talvez porque é mais cego, ou simplesmente porque segue o primeiro, veste preto.

O primeiro, o menos cego, com frequência passa por uma jaula e espreita para dentro da mesma. Sempre vislumbra as formas de uma rainha e de uma besta. Não uma ou a outra. Sempre as duas. Ao espreitar, conhece pela coroa ou pelo resfolegar acelerado a rainha e a besta no seu interior, encerrados no escuro. Não se sabe se se se conhecem. Nem se se se amam. Nem sequer se se estão mesmo encerrados.

O segundo homem, o mais cego, o de preto, por vezes tem momentos de hesitação nessa conjunta perseguição da parede diagonal. E porquê? Porque tudo lhe parece uma idiotice existêncial. Existêncial ao ponto de nem sequer saber se ele próprio, o segundo, não será apenas a sombra do primeiro. Não raras vezes no mundo o segundo segue o primeiro, não raras vezes no mundo o segundo veste preto e simplesmente não é. Ou melhor, de uma sombra se tratará e nada mais.

Dependendo da saliência da rocha, ora dão a barriga, ora as costas à parede. Se o vento desaparece, sincronizados ,caminham pesadões. Mas comportam-me livres, quase a voar, se o vento os açoita, o filha da puta.

Aliás, convém dizer isto – e isto, a rainha e a besta já o sabem: quando chegar o fim do Inverno e a chuva partir, vai haver um dia, insano, comum, no qual o vento musculado trará a Primavera. E com ele o primeiro sol. Nesse dia, mesmo se a parede tiver ainda muita continuação ao longo e dentro de si, a força do vento trará muito inesperado com ele. Nesse momento os dois homens não saberão como agir. Os pés do primeiro levantar-se-ão do chão levitando e deixarão espaço aos pés do segundo para levitarem também eles. E quando já ninguém esperar muito mais, o primeiro passará a ser o segundo, ou mesmo o último primeiro. E o segundo agarrará com força os ombros do primeiro e passará por cima de si, conquistando uma sombra própria.
Aí, não mais o segundo será tratado como segundo e não mais a besta e a rainha ficarão sós.

No entanto, as jaulas abertas e os números ordenados serão sempre a tentação dos carcereiros e dos matemáticos. Deles e das suas Sombras.

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