sábado, 21 de fevereiro de 2009

No melhor pano cai a nódoa, e ainda bem que ela cai


crónica de Rita Faria

A perfeição é uma coisa que irrita. Não descobri isto agora. Bastou-me ler, há anos atrás, um pequeno conto de Sophia de Mello Breyner, “Mónica”, para perceber como a vida perfeita, com amigos perfeitos, casas perfeitas, festas perfeitas, é absolutamente insuportável. E esta é uma constatação que tenho, efectivamente, observado ao longo da vida.
Basta atentarmos no primor de uma Celine Dion, que considero exemplo acabado e paradigmático do que afirmei, para que se confirmem plenamente os efeitos nefastos da perfeição. A garganta esganiçada de Celine Dion, a amplitude da sua voz irrepreensível, os esgares emocionados com que contorce a cara para dar emoção à canção que interpreta, são tudo factores que contribuem para que a perfeição plástica desta mulher pré-fabricada nos faça querer fugir a sete pés. Se eu fosse a Celine Dion, bastar-me-ia ouvir a rouquidão amargurada e, essa sim, plena de sentimento de uma Janis Joplin, por exemplo, para me cobrir de vergonha. E o que dizer da sujidade boémia e alcoólica da voz de um Tom Waits? As magníficas imperfeições deste último não batem aos pontos a perfeição limpinha da Celine Dion? Parece-me bem que sim.
Já na escola me apercebi claramente de que a perfeição é esteticamente muito pouco interessante. Frequentemente descamba até para o puro mau gosto, algo que - como todos sabemos - é imperdoável. Lembro-me perfeitamente de algumas colegas que tive, obcecadas pelo cor-de-rosa e levando a sua obsessão a extremos a que nunca me atrevi. No estojo de lápis destas minhas amigas, figuravam canetas cor-de-rosa, azuis-claras e as imprescindíveis canetas verde-água, que eram utilizadas para embelezar a folha A4 das composições. Escrevia-se uma composição cheia de erros ortográficos e depois enchia-se a folhinha de corações cor-de-rosa, bolinhas verde-água e pintinhas azuis-claras, tudo a bem de um valor estético apurado. Para mais, estas minhas amigas que conseguiam dispor, na tal folha A4, semelhante perfeição cromática, faziam-no sem ficar com um único risco descuidado de marcador nas mãos, algo que sempre me transcendeu e continua a transcender.
Nunca tendo percebido a importância do coração cor-de-rosa e da bolinha verde-água, também não percebo o valor estético da perfeição, que, quanto a mim, e como acima demonstrei com os exemplos de Celine Dion vs Janis Joplin e Tom Waits, não tem nenhum.
Antes de terminar, sinto-me na obrigação de dizer que tenho um objectivo secreto que me levou a escrever este texto nos termos em que o escrevi e que consta de uma simples e modesta tentativa da minha parte de fazer justiça a Kurt Cobain. Há pelo menos quinze anos, eu era uma adolescente dos anos 90 que, como me parece evidente, gostava dos Nirvana. Uma rapariga qualquer com quem conversava, e que eu na altura designaria por “parva”, do alto do seu nariz empertigado (rápida nota para mencionar que esta rapariga era, e com certeza ainda será, muito mais baixa do que eu), declarou não gostar de Kurt Cobain porque “o Kurt Cobain está sempre a dar erros a tocar guitarra”, e além disso “desafina a cantar”. Na altura, fiquei tão chocada que não pude dizer nada. Hoje estou em condições de elevar a minha voz em defesa de Kurt Cobain e de todos os outros imperfeitos que se enganam a tocar guitarra e, pelos vistos, desafinam. Eu digo: sim, enganam-se. Sim, de vez em quando desafinam. São seres humanos. E, por isso, cantam com força e com emoção, como só um ser humano pode fazer. Coisa que a garganta perfeita de Celine Dion não sabe, sequer, o que é, porque a humanidade lhe passa, com certeza, ao lado.

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