quinta-feira, 30 de abril de 2009

exercício: juntar numa cena a minha personagem com a de um colega


Segue o TPC.
É uma cena entre o Vicente e a Julieta (personagem da Ana Isabel).
Tem curtas aparições de personagens de outros colegas.




João Madeira da Silva









Cena de “SOCIOGLOTA” (título de trabalho)



01 – int. – escadaria da ursula noite

A porta do prédio de Ursula fecha-se. Vicente e Julieta sobem a escada muito íngreme agarrados às paredes e a rir. Não acenderam a luz. Riem baixinho para não acordarem os hóspedes. Quando chegam ao primeiro patamar descalçam os sapatos.

julieta
Temos de nos descalçar?
Vicente sorri curvado a tentar tirar as botas pesadas. Julieta, aparentemente bêbeda, vai-se metendo com ele.
vicente
Temos. Mas está difícil.

julieta
Por causa do barulho? Não queres que saibam que estou aqui contigo, é?

vicente
É por causa das limpezas. Para não levarmos porcaria para o quarto.
Julieta continua a meter-se com ele.
julieta
Chamaste-me porcaria, Sr. Rabisco?

Vicente consegue descalçar a primeira bota e,
desengonçado, agarra Julieta na cintura.
vicente
É. Tenho o hábito de insultar as raparigas que trago para casa.

julieta
Achei que ias dizer cama...
Alguma tensão. Ele beija-a e volta-se
Rapidamente para a segunda bota.
vicente
Agora lês os pensamentos, é?

Julieta beija-o agarrada ao seu pescoço.
Ele levanta-a e ela descalça lentamente
as sabrinas, usando apenas os pés, sempre
a beijá-lo. Depois larga-o e sobe rapidamente
as escadas enquanto ele descalça a outra
bota.
Vicente
Não faças barulho, ou temos visitas.
Julieta continua até chegar ao quarto.
Depois de descalçar a bota, Vicente sobe devagar.

02 – int. casa noite

Vicente abre a porta do quarto e Julieta
está só de cuecas a fazer um passo de ballet.
Ele senta-se na cama e observa-a a mudar
de posições devagar, como se ensaiasse.
Ele arregaça as mangas da camisa
enquanto conversam calmamente.

julieta
Sabias que se costuma dizer que se alguém é bom a dançar também é bom a...?

vicente
Isso quer dizer que fazes tudo em bicos de pés?

julieta
Olha, nunca tinha pensado nisso... Talvez faça, sim.

vicente
Pois eu não costumo dançar.

julieta
Nunca?

vicente
Nunca. E não é por não saber ou não gostar. Nunca se proporciona.

julieta
Se não o proporcionas é porque não gostas verdadeiramente. Eu danço quando me apetece.

vicente
Sim, mas, lá está, tu gostas verdadeiramente. Eu, no meu caso...

julieta
Desenhas quando te apetece.

vicente
Exacto.

julieta
E porque não me desenhas agora, Sr. Rabisco?

vicente
Porque não paras quieta.

Ela pára, sorridente. Aproxima-se dele e senta-se
no seu colo. Encostam as testas.
julieta
Não consigo ficar quieta para ti.

vicente
Fazemos assim... tu não páras. E eu não danço.

julieta
Combinado.

Ela afasta-se um pouco e tira dois cogumelos
de uma pequena bolsa das calças.

vicente
Já?

julieta
Não consigo estar quieta.

Devagar, Julieta come um dos cogumelos.
Depois, enfia a mão dentro das calças de Vicente.
Ele encosta a cabeça para trás e fecha os olhos.
Sente que ela lhe coloca o outro cogumelo na boca.
Puxa-lhe a cara e beija-o, sempre com a outra mão
dentro das calças.
julieta
Desenha-me com os olhos.

Vicente come o cogumelo e rapidamente
todos os sentidos estão mais despertos.
Sente os dentes a cortar o miolo do cogumelo
como lâminas e toda a magia a espalhar-se pela saliva,
pelo sangue e pela mente.
Cai para trás e nem se apercebe da forma como
Julieta, lentamente, o despe.
Na sua cabeça o quarto anda a volta. Começa a suar.
Olha para o lado e na mesa de cabeceira está
o livro de Fernando Pessoa, no mesmo sítio.
Em cima dele, Fernando Pessoa está sentado, como
se estivesse na Brasileira.
fernando pessoa
Não se esqueça da porta, meu caro. As portas merecem muito respeito.

Vicente assusta-se mas percebe perfeitamente
a alucinação.
Olha para a porta entreaberta e vê Julieta a fechá-la.
À medida que volta para a cama vai ficando
gorda e mais baixa. Disforme.

julieta
Não te sentes a perder peso?

vicente
Olhando para ti... Parece que não consegues perder peso. Mas perdeste altura.

Julieta senta-se em cima dele. Já está normal
aos olhos dele. Estão ambos nus.
julieta
Que engraçado. E como é que me vês, agora?

vicente
Vejo-te como se te desenhasse.

julieta
A carvão?

vicente
Sempre a carvão.

JULIETA
Então se me desenhas, também tenho de dançar.

Ela mete-se em pé e encosta-o para trás,
Deitando-o na cama. Começa a percorrê-lo com
as pontas dos pés. Ele deixa-se levar pelo embalo
de tudo e volta a olhar para a mesa de cabeceira,
onde Fernando Pessoa se mantém.


FERNANDO PESSOA
Não se preocupe, estou de saída. E aproveite-a. Seja qual for a forma dela agora, será sempre ela. A que o meu amigo escolheu para si.
Julieta puxa-lhe a cara e Fernando Pessoa
desaparece.

julieta
Deixa-me dar-te o que tenho.

vicente
Claro que deixo.
De que outra forma te poderia desenhar?


FIM

IMPREVISTO, Paula Cardoso Almeida


01 – ext. – ILHA DO PORTO manhã

Uma rua estreita, sem saída. Mais ou menos a meio avista-se um homem vestido com uma bata às riscas e quadrados verdes e brancos, e calçado com umas pantufinhas de lã. Está a varrer vagarosamente o passeio que dá entrada para a sua casa.

CORTA PARA

02 – Ext. – ILHA DO PORTO

Aproxima-se, devagar, um BMW preto que acaba por parar mesmo ao lado do morador atarefado. No interior do automóvel está um homem elegante, vestido de fato e gravata. Os óculos escuros escondem-lhe o rosto, mas o cabelo branco denuncia que já ultrapassou a barreira dos 40 anos.

Raul
Bom dia meu caro amigo.

Vaidoso, passa as mãos pelo cabelo, puxando-o sedutoramente para trás. O morador observa-o timidamente.

Jacinto
Bom dia senhor (com pronúncia do Porto, trocando os bês pelos vês).

Raul
Creio que estou perdido. Será que o meu caro amigo teria a amabilidade de me ajudar? (esboça um rasgado sorriso, exibindo uns invejáveis dentes brancos e alinhados)

JACINTO
(baixa os olhos) Se eu souber…

raul
Talvez saiba. Mora aqui há muito tempo?

Jacinto
Desde que me conheço como gente, senhor. E olhe que já vou a caminho dos 57 anos.

RAUL
Esplêndido! Estou a ver que o destino me apresentou o homem mais bem informado da zona. É um prazer conhecê-lo, meu caro.
Desliga a chave, tira o cinto de segurança e
sai do carro. Aperta mecanicamente os
botões do fato e só depois estende a mão para
cumprimentar o morador.

RAUL
Dr. Raul Pinto.

JACINTO
(limpando as mãos à bata) Jacinto ao seu dispor, senhor doutor. (faz uma vénia)

RAUL
Jacinto… Vou dar-lhe um conselho, meu caro. Um homem diz sempre o primeiro e o último nome, e o título, se o tiver.

JACINTO
Eu não tenho grande coisa senhor doutor. Mesmo o nome só tenho o da mãe porque nunca tive pai.

RAUL
São situações que me partem o coração. Foi por causa de pessoas como você que eu decidi ir para a política. Quero ajudar essa gente que não conseguiu dar um pontapé na má sorte.

JACINTO
Aaaaah! Pensei que o senhor doutor era médico…

raul
(dando uma gargalhada) Meu caro Jacinto, nos dias que correm ser médico não é nada de extraordinário.

JACINTO
(pensativo) E o senhor doutor também aparece nas notícias? Eu não sou doutor, mas já falei na TVI. Sabe lá o senhor doutor as invejas que houve aqui na ilha.

RAUL
Calculo… A conversa está agradável, mas meu caro Jacinto tempo é dinheiro e eu não posso perder nem uma coisa nem outra.

JACINTO
Pois está claro que não. Uma pessoa tão importante como o senhor doutor aqui a perder tempo com um borra-botas como eu.

RAUL
Não se subestime Jacinto pois o meu destino está nas suas mãos.

JACINTO
Nas minhas mãos senhor doutor? (nota-se uma certa inquietação no tom de voz) Mas como é que um pobre coitado como eu lhe pode ser útil?

raul
Meu caro, antes de mais, diga-me se posso contar com a sua discrição?

Jacinto
Peço desculpa senhor doutor, mas não percebi.

RAUL
Oh homem! Perguntava-lhe se você sabe guardar um segredo. Não me diga que aqui no Porto são todos de compreensão lenta? (dá uma gargalha maldosa)

A expressão de Jacinto altera-se ligeiramente.
Recomeça a varrer, mas desta vez apressadamente.
Pára passados dois minutos e fita em jeito de desafio o interlocutor.


JACINTO
Não gosto que falem comigo dessa forma. Eu não sou burro!

RAUL
Pois… Eu sei. Desculpe, mas a minha vida depende daquilo que o Jacinto me contar.

jacinto
Mas eu nem sei se sei aquilo que o senhor doutor tanto quer saber.

RAUL
(com um ar muito sério) Pois bem. Vou contar-lhe tudo, desde o início. Há um mês anunciei a minha candidatura à câmara municipal da Moita e estava tudo a correr muito bem até que na semana passada recebi uma carta em que me ameaçavam de, caso eu não desistisse da candidatura, divulgar um segredo pavoroso capaz de arruinar a minha carreira política.

JACINTO
E que segredo é esse, senhor doutor?

RAUL
Nem eu sei ao certo o que é. Só sei que tem que ver com a minha esposa e que foi algo que ela fez quando ainda era solteira e vivia aqui no Porto.

JACINTO
A sua senhora é daqui da rua, senhor doutor?

RAUL
(gesto de repugnância) Chiça! Você diz cada coisa homem. Não se vê logo que eu sou de outro nível?

JACINTO
Já não percebo nada. Mas então que mistério tão terrível pode ter a mulher de um homem da sua categoria, senhor doutor?



Raul desvia o olhar para o chão, tira os óculos
e faz uma expressão quase tão trágica quanto patética.

RAUL
Ter abandonado um filho

JACINTO
Ai que isso não se faz. É que nem os animais…

RAUL
Poupe-me aos moralismos Jacinto. Neste momento o que eu preciso é de saber se esse rapaz existe e se vive aqui. Depois arranjarei uma forma de o silenciar.

JACINTO
Eu também queria saber muita coisa…

RAUL
Deve ter à volta de 20-22 anos. Pense lá se conhece uma pessoa com essa idade que viva com alguém que não seja nem pai nem mãe.

JACINTO
O senhor doutor Raul é o pai?

RAUL
Você pensa em cada coisa. Claro que não. Se fosse o pai a minha mulher não tinha escondido isso de mim. Irra!

JACINTO
(pensativo) Assim é difícil…

RAUL
Pensei que nestes sítios todos soubessem da vida de todos.

Jacinto
Sabemos aquilo que vemos e ouvimos.

RAUL
Está a deixar-me nervoso homem. Não me está a esconder nada, pois não?

JACINTO
Vocês lá de Lisboa desconfiam sempre da gente, que se calhar até somos mais honestos. Se o senhor doutor ao menos me dissesse como é que o rapaz se chama.

RAUL
(visivelmente irritado) Porra! Você é uma pessoa muito complicada. Acha que se eu soubesse o nome dele estava aqui a fazer conversa consigo?

JACINTO
(a entrar em crise psicótica) Pois, e eu sou um caralho de um Deus. Vou meter o dedo no cu e adivinhar como se chama o filho que a puta da tua mulher abandonou.

RAUL
(completamente embasbacado) O Jacinto sente-se bem? É que me parece um tanto ou quanto alterado. Eu só quero saber quantos jovens de 20 anos é que há aqui na rua e vou-me logo embora.


jacinto
(rindo desalmadamente) Já sei. Só um momento senhor doutor que eu vou ali à minha casinha buscar a lista e já volto.

corta para


03 – Ext. – ILHA DO PORTO
Jacinto deixa cair a vassoura. Está completamente histérico.
Aos pinotes, embrenha-se por uma reentrância
labiríntica que dá acesso a um conjunto de casas.
Não demora mais dez minutos. No regresso,
de sorriso em riste, traz um papel na mão.
Raul está ansioso e estupefacto, ao mesmo tempo.

JACINTO
Tcharã. Cá estão eles. Agora é só escolher. (sacode o papel, segurando-o por uma ponta, como se estivesse a aliciar Raul a arrancar-lho das mãos)

RAUL
Dê-mo se faz favor.

JACINTO
Não sei se dê, o menino Raul está a portar-se muito mal e eu gosto que me peçam com jeitinho.

RAUL
(suspira enervado) Oh homem! Não me deixe nesta ansiedade.

JACINTO
(estende a mão, decidido) Aqui está.

RAUL
Mas…Mas… Mas isto é um talão de supermercado. (trémulo)

JACINTO
Não, não. Isto é a resposta que o senhor presidente da câmara procurava. Não queria que eu o ajudasse?

RAUL
Tem razão. A culpa é toda minha. Eu é que não devia meter conversa com malucos.

jacinto
Vai-te foder meu grande filho da puta. Tu é que não bates bem dos cornos e o louco sou eu?

RAUL
Já percebi que cometi um erro ao confiar na sua boa fé.

JACINTO
(volta a pegar na vassoura) Pensas que por falares bonito és mais do que eu? Pois fica a saber que és o maior monte de merda que já apareceu por aqui. Drogados e bófias passam por aqui todos os dias, mas políticos cornudos é a primeira vez.

RAUL
Não me insulte por favor. (põe os óculos) Bem, foi um prazer falar consigo Jacinto. Voltarei um destes dias, com um detective particular, para acabar o que comecei.

JACINTO
Estás a gozar comigo meu filho da puta. (levanta a vassoura em tom de ameaça) Eu já não te disse quem é o filho bastardo da galdéria da tua mulher? (gritando)

RAUL
(ignorando) Bem, até à próxima, então.

JACINTO
Isso, põe-te nas putas antes que te dê cabo do cagueiro.


Desanimado, Raul aproxima-se do carro, que está completamente sujo de excremento de pombas. Abre a porta, senta-se, aperta o cinto de segurança e liga a chave. Amarrota o papel que Jacinto lhe havia dado e atira-o pela janela. Recosta-se no banco por uns instantes e arranca. Pelo retrovisor avista Jacinto a acenar-lhe e a curvar-se para fazer uma vénia completa. É quase hora de almoço.



A rua está deserta. Vê-se um miúdo a passar pelo local onde há instantes estava estacionado o BMW preto de Raul. Um papel caído junto a uma tampa de esgoto chama a sua atenção. Abaixa-se para o apanhar e, curioso, desembrulha-o. De um lado está uma lista de compras. Do outro lado, lê-se numa escrita hesitante: AS PAREDES TÊM OUVIDOS E EU NÃO QUERO QUE DIGAM QUE EU SOU BUFO. É O NETO DA VELHA DO N.º 73 SENHOR DOUTOR. ASS: JACINTO DORIA, 4º CLASSE.


Cena do Metro, (Jesus e Júlio) por Ana Costa Ribeiro


01 – int. – Estação de metro (hora de ponta) Dia


O metro chega. Júlio está entre a multidão, é o primeiro junto à linha amarela. Traz uma pasta. Júlio carrega o botão que abre a porta da carruagem e ao entrar evita tocar na linha amarela com os pés.
Limpa o suor da testa com um lenço de pano que tira do bolso das calças.
Senta-se em frente a Jesus. Olha diversas vezes o relógio (nervoso).

Jesus ouve música com headphones, curte a música. Observa Júlio pelo reflexo da janela.

Toca um telemóvel. Júlio atende. Jesus baixa o volume do leitor de mp3 e ouve a conversa.



Júlio
Sim, o próprio.
...
Só estou livre a partir das 16.
...
Muito bem.
...
Diga-me a morada.
...
Júlio, atarantado, retira da pasta que está cheia
de livros, uma agenda e uma caneta.
Rabisca na agenda.
Como combinado.
...
Amanhã então.
...
Claro, até amanhã.


Júlio guarda apressadamente tudo na pasta. Chega à sua estação. Quando vai a sair, a agenda cai na confusão.
Jesus levanta-se, apanha a agenda de Júlio e tenta sair da carruagem atrás de Júlio mas a porta fecha-se.

Jesus fica de pé. Abre a agenda. Não tem identificação. Folheia as páginas. Só tem moradas escritas nos dias da semana. Parece código. Procura o dia de amanhã, onde também está escrita uma morada.

Jesus senta-se e tira os headphones.

Do bolso do casaco Jesus tira um pacote de açúcar onde se lê em caligrafia um número de telefone e a mesma morada.


Voz off feminina
A campainha não funciona. Quando chegares dá-me um toque.

Jesus fecha a agenda.


Jesus
Fuck.

Um doce tenor, curtinha de Paulo Carregosa

01 – ext. – Sede Local do PSD (Seixal)

Imagem da sede do PSD no Seixal. O plano foca inicialmente a sigla do partido e a bandeira.
Avança depois para uma das janelas da sede.



corta para


02 – int. – SEDE

Numa mesa redonda Paulo e Raul estão a combinar a estratégia para a campanha autárquica. No entanto, falam também de outras coisas nomeadamante de fofoquices e formas de tramar outros companheiros de partido (1)



Raul
É como te digo o tipo é “muita parra e pouca uva”. Conhecemo-nos na Faculdade, ele depois interrompeu o curso e casou com a gaja das Doce, a Fá. Lembras-te dela?

Paulo
A tipa das Doce? Lembro-me perfeitamente! Eh pá, e agora anda a dar entrevistas armado em intelectual a dizer que leu livros que nem sequer existem…O barbuças do Pacheco é que o desmascarou.
E anda a tramar a Manela. Porra, onde é que já se viu um gajo a organizar movimentos, a dar palestras. Está a correr por fora à espera que ela caia.

Raul
Pois o Passos Coelho é um gajo do caraças. Ambicioso até mais não. Irra, que é demais!!
Mas tem boa presença e voz, disso não há dúvida, que são coisas importantes nos dias de hoje.
Encontrei-o há dias e tivemos a recordar velhos tempos. Ele há coisas do caraças, e esta tu não sabes de certeza. Tivemos aulas de canto juntos, há uns anos com uma professora do conservatório que por acaso também é de Aguiar da Beira…

paulo
Sim, eu li ou ouvi que ele, se quisesse, tinha sido tenor porque tinha voz para isso.

raul
Olha, nós éramos os melhores tenores só que eu era um bocadinho superior a ele.
Eu, depois, e por curiosidade, ainda tirei uma pós graduação em ventríloco.
Mas a fofoquice que eu te queria contar é a seguinte. Eh pá, estas coisas são como são. O Pedro é um bom rapaz mas todos temos os nossos pontos fracos, e o que é facto que ele tem um passado que não gosta que venha à tona. Eh pá, não sei se é por receio de ter sido casado com a tal tipa das Doce e que isso lhe tire credibilidade… O que até é estúpido porque foi há tanto tempo…

Paulo
Porra, desembucha lá que já estou em pulgas!

Raul
Vais-te rir…
Pois o nosso companheiro PPC não pode ouvir alguém a cantar o “Ali Babá” das Doce com voz de tenor!! Imagina…
(Raul canta a primeira estrofe da canção)
com a sua voz de tenor)
Eh pá, mas fica completamente desorientado! Esta mistura de regresso ao passado dá cabo dele!
Não consegue articular duas ideias seguidas e lá se vai a clareza do raciocínio.
Não percebe as perguntas, responde a gaguejar, é um descalabro!

Paulo
Mas isso é bestial, pá!
A Manela vai gostar de saber isso, e a nossa questãozinha com ela é capaz de se tornar… como dizer, insignificante!


corta para

03- INT. SEDe do PSD Nacional

Vê-se o portão da sede.
No interior Manuela Ferreira Leite está a
escrever quando o telefone toca.

ManUela
Sim, quem fala?

Paulo
Olá Dra, é o Paulo, como está?

Manela
Olá Paulo Rangel, ainda que bem me liga….

Paulo
Nâo, Dra Manuela, não é esse Paulo. É o Paulo Cunha, do Seixal, como está?


Manuela Ferreira recolhe o sorriso e põe um
ar mais grave

MANUELA
Olá, como vai?

PAULO
Oh Dra Manuela, estou aqui em reunião com
Raul, o Dr. Pinto, lembra-se dele?


manuela

Oh Paulo, eu acho que já fui clara quanto a esse assunto. O Dr. Pinto não vai poder ser cabeça de lista à Assembleia Municipal de Aguiar da Beira e simultaneamente candidato à Assembleia Municipal aí do Seixal, ainda que em lugar não elegível. São coisas que retiram credibilidade, percebe?

PAULO
Mas, Oh Dra Manuela, a propósito de credibilidade tenho uma história para lhe contar que é capaz de lhe interessar…

manUela
Ah, é?? E que história é essa??
Paulo pisca o olho a Raul

Paulo
O Raul.. .perdão, o Dr. Pinto, conhece uma historieta do PPC bem engraçada e talvez um pouco embaraçosa, que diz??
Manuela Ferreira Leite
ajeita-se melhor na cadeira e
tira os óculos
MANUELA
Quero que ma conte, e já agora que seja verdade, é a minha politica como sabe…

PAULO
Pois cara Dra Manuela o Dr. Pinto conheceu o PPC há uns anos. Andaram juntos na Faculdade de Economia e tiveram aulas de canto no Conservatório.
O Dr.Pinto descobriu que o PPC, vá-se lá saber porquê, tem uma questão mal resolvida no passado com a qual tem dificuldade em lidar…

MANUELA
Ah, sim?? E que questão é essa??

PAULO
Pois o nosso amigo,não vai acreditar, fica perturbadíssimo quando ouve alguém cantar com voz de tenor o Ali Babá das Doce!! Imagine isto no meio de um debate ou numa palestra!!
Setinha para cima, não Dra Manuela??

MANUELA
Não acredito, Oh Paulo!! O “piqueno” tem esse problema? Pois eu sabia da história com essa Fá das Doce, acho que já estão divorciados, e também das afinidades dele para o canto, mas … que interessante…
Mas, oh Paulo, como é que isso se processaria, digamos que, em termos operacionais??

PAULO
Tinhamos que infiltrar aqui o Raul, certamente com recuroso a disfarces, nos locais e às horas onde estivesse o PPC.
Imagine uma entrevista à saída daqueles colóquios que ele organiza…
Há uma pergunta da repórter da SIC, e o Raul disfarçado de jornalista com um cubo de uma outra qualquer estação de rádio ou TV começa a cantar a tal canção.
É que há um detalhe que ainda não lhe contei o Raul é ventríloco, de forma que não é muito fácil saber quem está a cantar, e nesse entretanto os sinais de perturbação começam a fazer-se sentir! Que me diz??

MANUELA
Olhe Paulo, estou sem palavras…
Não sei o que lhe dizer…

PAULO
Oh Drª Manuela e quanto à questão da acumulação do Dr. Pinto? É que ele dava-me um jeitaço aqui no Seixal. É uma pessoa muito séria que gosta de políticas de verdade e amigo do seu amigo, como se pode ver nesta história.

MANUELA
Ok, vou analisar melhor. O argumento que serviu para dizer que não havia credibilidade pode também funcionar em sentido contrário ou seja, como está no Seixal em lugar não elegível é a prova provada que não queremos enganar ninguém. Aparece num lugar simbólico, tá a ver oh Paulo? Eles comem…
Mas olhe que ainda nem estou em mim, era difícil uma notícia que me pusesse mais bem disposta…
Estou rodeada de dois Paulos de luxo. Você e o Rangel.
Se fosse professora de matemática punha o Paulo em evidência, abria parêntesis e lá dentro ficava Rangel + Cunha e voltava a fechar parêntesis! Ou seja, o nosso slogan passaria a ser:
Paulo Rangel + Paulo Cunha=
=Paulo (Rangel + Cunha) = Política de Verdade
É a propriedade distributiva da multiplicação
aplicada à política.
A questão é que a populaça não é lá muito forte em matemática, e provavelmente mais uma vez eu não seria compreendida…


(1) Num partido democrático as traições e jogos de poder são coisas normais.
É um trabalho como outro qualquer. É um facto que não é remunerado. Mas dá-lhes um gozo…)

A despedida de (He)Lena



conto de Ana Costa Ribeiro

Encosto-me ao tanque de lavar roupa e calço as botas que trago na mão. Ao longe reconheço um vulto. Um homem cava a terra, segura uma enxada, repete o movimento. É madrugada ainda, corre uma neblina, ouvem-se chilreios e água que segue numa levada. Está frio, trago as mãos nos bolsos. Desço à terra pelo carreiro. É o meu pai que cava lá em baixo. Quando me vê suspende o movimento da enxada, segura-a com uma mão, mais parecendo que é agora a enxada que o sustém a ele. Tira o chapéu e limpa o suor da testa com as costas da mão.
Estou a arranjar o caminho para as águas das chuvas correrem. Antigamente aquele era um campo de milho, no terraço escolhiam-se maçarocas, algumas abóboras estão alinhadas no muro, parecem guardiãs da terra, servem de pouso aos melros. Ninguém faz isto por mim. O meu pai já não tem a força que tinha, mas alguém tem de continuar a calçar as botas. Noutros tempos os caminhos andavam sempre arranjados. Dou-lhe um beijo e ele volta a colocar o chapéu. Desculpa ter-te feito vir aqui abaixo.
Regresso a casa pelo mesmo carreiro. Tenho a mala à porta desde ontem à noite. A minha mãe ainda está deitada, sei que não dorme porque a ouvi mudar de posição na cama. De noite os ruídos são projectados um mar de vezes, uma gota que pinga da torneira, o gato que desce do peitoril da janela, a madeira de um móvel que range. Nem eu nem a minha mãe gostamos de despedidas.
Ontem ao final do jantar ficámos os três ao lume. Junta mais essa madeira. Os joelhos quase a ferver, as pestanas quentes, os olhos baços, o fumo da chaminé passeando-se pela casa, as paredes tornando-se escuras. E eu recordando como se sente o cheiro a lume quando se entra em casa, como cada casa tem o seu cheiro. Eles continuaram, contaram a história de como aprenderam a missa em latim e quando se riam o padre castigava, contaram a história do homem que fugia da polícia, contaram que para se cozinhar um peixe do rio há que lhe retirar o céu da boca. E eu ouvi as mesmas histórias a duas vozes, ambos contando a mesma coisa pelas suas palavras, eu sempre no meio. O peixe é apanhado acima da barragem. (Abaixo da barragem a água é parada.) Chega a pesar doze quilos. (Alguns com mais de doze quilos.) Tem que se tirar os dentes. (Os dentes dão um mau sabor.) Não são bem os dentes, é mais o céu da boca. (Perto das guelras.).
Duas horas depois o meu pai ficou sozinho a remexer as brasas, com um copo de vinho na mão. Eu e a minha mãe dirigimo-nos para quartos contíguos. Ela não se despiu, deitou-se sobre a colcha da cama, apertou o peito com as mãos. Fiquei por momentos a observá-la da porta, pela luminosidade tosca que entrava pela janela. Vi o seu corpo enrolado sobre si mesmo. O que tens?, perguntei. Dói-me aqui, Lena. Reparo que quando me tratam carinhosamente esquecem-se do He, o meu nome perde uma sílaba e ganha afecto. Ela aponta o peito. Sento-me à beira da cama, inclino-me para lhe dar um beijo e sinto o cheiro a sabonete da sua pele. És boa rapariga, espero que não te falte nada. E foi esta a nossa despedida.
Agora já estou longe. O vapor de água da expiração embacia a janela do comboio. Limpo o vidro com a manga da camisola, lá fora o mundo corre paralelo à linha férrea. Continua. A cidade é bem maior do que o meio palmo no mapa que estudei antes de partir. Entretanto é dia, o sol subido envia vectores de luz povoados com pequenos pontos de pó. Sobre o meu colo adormeceu um livro, ficou marcado com o bilhete da viagem.
Quando finalmente é anunciada a próxima estação sinto um arrepio na nuca, aproximo-me da saída, ato o cabelo, enrolo o cachecol ao pescoço, respiro fundo, seguro a mala e desço os degraus até Lisboa. Parece agora tudo tão claro.

exercício: juntar numa cena a minha personagem com outra

Antes de começar, a síntese da personagem da Susana Crispim:

Jorge de Couto Galvão, 42 anos, solteiro, bom aspecto, advogado mas sem muito advogar. Vive com o pai e a tia no Chiado. A mãe morreu no parto (lacunas na educação, imoralidade) e ele nunca viu um retrato seu. Jorge vai a festa, leva mulheres para casa. É egoísta e interesseiro, mas agora está apaixonado.



Na Rua do Alecrim

“(…) do Chiado ao Cais do Sodré só dista a Rua do Alecrim.”

Frank subiu a pé, contra os funcionários que começavam a descer para o Cais do Sodré. Alguma das duas igrejas lá em cima havia de assinalar as cinco horas. Ainda não, ainda não. Apressou o passo e entrou a correr no edifício novo do tribunal. Os sinos começaram a tocar nesse instante e Frank pára, absorto, em frente à escadaria, a recuperar o fôlego e a ajeitar o uniforme, tonto da corrida, incomodado com o tocar violento dos sinos das duas igrejas, frente-a-frente pouco acima, já no Chiado, que pareciam competir pelo marcar das horas que passam. Imaginou que alguém que não conseguisse perceber que um sino era do Loreto e outro da Encarnação podia pensar que eram dez horas, em vez de cinco. É o seu novo uniforme de polícia, mesmo imoralmente suado, que impede as pessoas que por ele passam de lhe perguntarem o que faz ali especado. E daí pensou também que as dez horas já não têm esta luz de fim de tarde que passa pelas janelas do tribunal, uma luz que parece descer a rua como os funcionários do tribunal e cair no rio, enquanto se faz a noite. As dez horas têm de ser as da manhã… E de tanto pensar, pensou que ouvia uma música “leve, breve, suave/canto de ave”, lembrou-se do poeta na esplanada, a escrever sobre as igrejas que se defrontam de hora a hora. E de tanto pensar, ali parado no corredor, caiu num desvario, transe da corrida, do cansaço, da tensão dos últimos dias. Para piorar, viu flores e pensou que morreu. E estava assim, parado, a pensar que gostava de ser velado lá em cima no Chiado, quando um toque no ombro veio despertá-lo:
– Não tenho muito tempo. Diga ao que veio.
À sua frente, o doutor Galvão, com um grande ramo de flores na mão. Impaciente, de sorriso em espera. Frank pensou que o doutor havia de ir sentar-se na Bénard com uma bela senhora e a beleza dela e este ardor que traz de a ver não o iriam permitir reparar nos sinos que tocam a dobrar. Frank recompôs-se. Chega de desvario. Respirou. Estava vivo; as flores não eram para o velar.
– Dois minutos, doutor.
– Diga.
Hesitante. Como explicar? A palavra alhada parecia-lhe pouco.
– Eu… bem… eu acho que me meti numa alhada.
– Uma alhada legal?
– Mais uma alhada moral…
– Então vá falar com o padre que eu não tenho muito tempo.
Pensa que talvez esteja a cheirar mal e encolhe-se de vergonha. Mas logo se concentra no que o trouxe e insiste:
– Doutor, é importante… não sei a quem mais recorrer.
– Vá, desembuche, homem, que eu tenho de me ir embora.
– Bem… sabe o tipo que trouxeram ontem? Eu estive a falar com ele lá em baixo na esquadra e acho que ele é inocente…
– Inocente, humm? Mas foi você que o trouxe, não foi?
– Fui, mas a conversa do homem… pareceu-me mesmo… sabe… tenho quase a certeza de que ele é inocente…
– Mas diga-me lá, o que é que disse o júri?
– Culpado. Vai para Tires.
– Então deixe a justiça funcionar, homem, e não pense mais nisso.
– Mas, doutor, eu falei com ele. Ele não fez nada de mal.
– E o que é que você quer fazer agora?
– Não sei, pensei que o doutor talvez me pudesse ajudar. Não sei bem o que fazer.
– Homem. Você acabou de chegar, ainda não conhece como é que as coisas funcionam. E está a deixar-se afectar. Não deve deixar isso acontecer. Você fez a sua parte: soube de um crime e avisou as autoridades. A partir daí, já não é consigo.
– Não foi bem um crime…
– Não foi? Então foi o quê?
– Foi conduta suspeita.
– Mas o júri condenou-o, não foi? Então vai dar ao mesmo.
– Mas, doutor… doutor, puseram-me frente a frente com ele. E eu acho que ele não faz mal a uma mosca.
– Homem, mas você não tem de achar nada. Se o júri condenou, está feito, está acabado. E você tem de se deixar destas conversas, senão ainda o denunciam a si também. Onde é que já se viu estar a defender um criminoso? Componha-se, homem! Você agora é um dos nossos.
– Desculpe, doutor, mas pensei…
– Não pense mais. Não quero ouvir falar mais nesse assunto. Nem a si nem a ninguém, percebeu? Vá, componha-se. Assunto arrumado. E agora tenho de me ir embora. Uma boa Páscoa para si, homem.
– Obrigado, doutor, desculpe doutor, para si também.
Viu-o sair e ficou a vê-lo subir o resto da rua até ao Chiado. Parecia levitar. Frank invejou-lhe a leveza e pensou que o doutor Galvão era bem mais velho do que ele. Deve ser uma questão de atitude, pensou. Ou então é o dinheiro que os impede de envelhecer. E de pensar duas vezes em certos assuntos. Ou então é a beleza das mulheres que apaga o resto. Ou então sou eu que sou um asno. Virou-se e desceu. Ia ainda pesado, mas era levado pela multidão de funcionários que continuavam a sair das repartições e a descer em direcção ao Cais do Sodré.

Sílvia Otto Sequeira

o fato imaculado


D. Aurora da sua janela viu-o crescer. Lembrava-se dos joelhos esfolados, a camisão fora dos calções, o jogo da bola com os amigos.
Via-o chegar da escola e, fanfarrão, contar aos amigos feitos e tesouros que só em sonhos teria.
Recordava a ida para o liceu, esforçada ainda que sempre um pouco atrás dos outros. A entrada para a faculdade, as namoradas.
Observava D. Aurora o esforço dele por esconder as suas dificuldades: as correrias das aulas para o emprego nocturno, as mentiras para que ninguém soubesse que vivia acima das suas possibilidades.
Um dia, sentindo-se a avó que ele nunca tivera abordou-o, ofereceu-lhe ajuda. Altivo, ignorou-a. Já na altura, D. Aurora percebera que todos sabiam que aquele pobre era como na história do rei vai nú: só ele ainda acreditava no que queria parecer aos outros.
Deslumbrado, seguira os mais fortes, mais ricos e poderosos, em vez de se aliar aos que como ele poderiam ter ajuda sem nada mais em troca que o rótulo de miserável.
Agora ali estava ele. Adulto, pobre. Continuava a ver os amigos de sempre. Pobres eles também agora. Não tinha a quem recorrer e pior, a quem seguir o exemplo.
D. Aurora só podia sentir pena daquela alma vaidosa que apenas se preocupava em parecer. A última vez que o viu, estava num fato impecável. O cabelo desalinhado, a barba por fazer, adivinhava-lhe os bolsos mais que vazios, rotos. Mas por fora, o fato imaculado.

Marta Spínola