sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Uma vez porca, para sempre porca



exercício de sketchs - Pedro Amaral/João Silva


CENA I - INTERIOR – PISTA DE DANÇA DO QUEEN’S – NOITE

Entramos na pista de dança do Queen’s, onde poucos dançarinos fazem os seus rituais habituais de dança e flirt. Ao centro, uma porquita de vinte e poucos anos assume o protagonismo. Veste calça branca transparente que mostra um fio dental. Tem um top de lantejoulas, umas sandálias stiletto e maquilhagem berrante. Tem um piercing na sobrancelha e no lábio inferior, no lado esquerdo, com um brilhante.

O plano aproxima-se da cara de Kátia e num efeito de time lapse somos levados para o seu futuro.

CORTA PARA:

CENA II - INTERIOR – RESTAURANTE – NOITE

Estamos à mesa com várias pessoas. Kátia chega à mesa apoiando-se no ombro de um rapaz novo, na casa dos 20. Está muito mais velha e visivelmente embriagada. Ao dobrar-se para tirar uma foto com o telemóvel Hello Kitty a ela e ao rapaz, mostra a sua tatuagem tribal no fundo das costas, já enrugadas.


KÁTIA
Olha p’raqui bebé. Esta vai pó hi5.

RAPAZ
Eeer... Mas eu...

KÁTIA
(enfiando-lhe o indicador na boca como que a dizer “Chiiuu”)
Não fales. Deixa rolar.
(e enfia-lhe a língua nos ouvidos)

O rapaz levanta-se imediatamente e foge desculpando-se com uma ida à casa de banho.
Ao chegar, visivelmente perturbado, senta-se e foca o olhar no tremor da mão da velhota. Esta apercebe-se que o jovem lhe olha para as mãos e diz:

KÁTIA
Gostas?

O jovem ignora-a, ainda perturbado, e mete conversa com os restantes presentes à mesa. De repente começa a sentir algo verrugoso, calejado e frio na canela. Era a velhota que empernava com ele enquanto o olhava por detrás de uns óculos garrafais.
O rapaz não aguenta mais, faz um gesto bruto na mesa que cala todos os comensais e grita:

RAPAZ
PÁRA, AVÓ!

exercício 'Sketch' - Rita Faria/Ana Costa Ribeiro



(diálogo entre um polícia e senhora de idade que se conhecem e se encontram na rua, enquanto o polícia faz o seu giro)

- Olá, senhor guarda Miguel, tudo bem?
- …aaaaah…. Ó D. São… desculpe lá, D. São, mas a D. São não pode andar por aí assim vestida.
- Não posso? Então mas… porquê?
- Ó D. São, é que isso é uma indecência. Assim, a mostrar tudo.
- Então se eu estou de gola alta e tudo, saia até aos tornozelos, cachecol porque está frio, luvas porque as pontas dos dedos andam sempre geladas e eu sem luvas nem consigo mexer as mãozinhas nem nada, collants grossos de lã porque sem eles nem dois passos dou, enregelada de frio que fico, botas até aos joelhos, gorro para não se me congelarem as orelhas, quer dizer… a mostrar tudo, como?
- A mostrar tudo, D. São! Essa roupa toda justa! Já viu esses collants todos colados à perna? Ainda por cima, uma pessoa da sua idade. Essas luvas sexy… alongam-lhe os dedos… esse cachecol a cair levemente sobre o peito, a realçar a protuberância… é que chama a atenção, percebe, esse cachecol chama a atenção para a protuberância.
- Chama a atenção para a protuberância, como?
- Chama a atenção para a protuberância, D. São, chama! O que é que quer que eu lhe diga? Vai ter de ter paciência, D. São, mas ou vai a casa mudar o vestuário, ou vou ter de a levar para a esquadra. É que, ainda por cima, uma senhora da sua idade com essa roupa, só se for para deixar os homens loucos. É isso que a D. São quer?
- Uma senhora da minha idade? Então mas o sr. Guarda Miguel sabe tão bem que eu fiz 65 anos na semana passada… homens loucos… homens loucos, como?
- Homens loucos, D. São! Uma senhora assim, enxuta, como dizem os brasileiros, toda boa, desculpe lá a expressão mas é verdade, com idade para andar aí aos pinotes, com esses collants todos justos, essas botas altas, parece que quer ir ali fazer quilómetros no Intendente, ó D. São, olhe que francamente, nem me faça falar mais.
- Ai, sr guarda Miguel, o que é que se está a passar? Então mas… eu sou viúva, o sr guarda bem sabe, desde que morreu o meu Jorge que não olho para outro homem, agora o sr guarda põe-se a falar de protuberâncias e pinotes e que eu tenho de mudar de roupa e… sinceramente, não sei.
- É que a D. São, ultimamente, tem andado um bocado para o indecente. E depois, vejo-a sempre com cada livro debaixo do braço que vou-lhe contar… olhe que não a queria a tomar conta da minha filha, D. São.
- Livros debaixo do braço, como, sr guarda Miguel?!
- Sim, por exemplo esse que traz aí, olhe-me para essa indecência!
- Então mas se isto é um livrinho de cânticos à Virgem, pois se eu vou agora para a missa, pois se eu…
- Tá bem, tá, vai para a missa. E acha isso bem, andar por aí com livros sobre virgens? Acha isso bem? Quer dizer, é o collant justo, é a luva sexy, é a virgem, bem, só lhe digo que a estou a avisar, D. São. Mais um bocadinho e vai comigo para a esquadra.
- Mas que livros é que eu devia ter, então… não percebo…
- Ó D. São, uma senhora com ar tão fresco, tão sofisticado como a senhora e não sabe! Leituras decentes, D. São, leituras decentes. Um Marquês de Sade. Um Henry Miller. Um Milo Manara, para entrarmos na banda desenhada. Um D.H. Lawrencezito, a Lady Chatterley, por exemplo. Esse tipo de coisas.
- Ó sr guarda Miguel, mas olhes que eu isso nunca hei-de ler na vida, sr guarda Miguel, olhe que eu conheço esses ordinários todos que me está a dizer e olhe que eu nunca na vida, olhe que eu só do Marquês de Sade li a Justine e jurei para nunca mais, e depois li os 120 Dias e jurei para nunca mais, e depois li a Filosofia da Alcova e jurei para nunca mais, e depois li os Trópicos do Henry Miller e jurei para nunca mais, e depois li o Lady Chatterley e aquela ordinarice da Virgem e do Cigano, e jurei que esse DH Lawrence, meu Deus, que nojo, nunca mais, não me faça chorar, sr guarda, olhe que esses ordinarões eu nunca hei-de ler, se faz favor deixe-me ir para a missa com os meus cânticos à Virgem, sr guarda!
- Ah, ele é isso? Com que então Marquês de Sade é ordinarão? Com que então Henry Miller é ordinarão? Com que então DH Lawrence é ordinarão? Com que então andar por aí a ler coisas sobre virgens e cânticos é que é bonito?! Basta, D. São, vem comigo para a esquadra e é já, e olhe que o collant justinho, a luva sexy, o cachecol a realçar a protuberância vão ter de ir à vida, percebeu? Para a esquadra, presa por conduta indecente, e é já.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

exercício sketchs - saga 'A CENSURA'

de Luís Gaspar


Contextualização:


Este sketch é uma sátira aos recentes episódios de censura, primeiro com o Magalhães (no Carnaval de Torres Vedras) e, dias depois, com o livro Pornocracia (na Feira do Livro Usado de Braga).

Personagem principal:

Um agente policial tipicamente português: castiço, barrigudo, com um farto bigode e ar de bêbado, excessivamente zeloso e burro que nem um chaparro.

Síntese da acção:

A luta cega e persecutória deste polícia (com tiques de censor) contra a pornografia. Pela moral e pelos bons costumes.


CENA I


Vê-se um casal de amantes no escritório – já fora de horas – o patrão e a secretária, os dois já descamisados, comendo-se em posições muito acrobáticas. Os dois estão tão compenetrados na trancada fervorosa que estão a dar que nem topam a entrada em cena de um agente que os surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-vos, seus pornógrafos! Tarados. – Grita ele.
Patrão: – Não senhor agente. – Responde atrapalhado enquanto ambos se compõem à pressa. – Isto não é nada do que o senhor está a pensar, nós podemos explicar. Não diga nada à minha mulher.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-vos a prevaricar.
Secretária: – É que nós fazemos teatro amador e estamos a ensaiar uma peça do famosíssimo escritor indiano chamado Vatsyayana Mallagana. Não conhece?! – Pergunta ela com um ar angelical.
Polícia: – Literatura indiana? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que diabo de peça é essa? Eu não estou bem a ver.
Patrão: – É uma peça baseada num livro de aforismos chamado Kama Sutra.
Polícia: – Kama Sutra? E isso é arte, é cultura?
Secretária: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é cultura podem continuar a ensaiar.
O casal volta a despir-se à pressa e continua no forrobodó.


CENA II

Vê-se um casal de velhinhos no sofá da sala – no lar de idosos – a ver um filme com bolinha vermelha. Entre gemidos e uivos do televisor os velhinhos entreolham-se saudosos dos bons velhos tempos. Os dois entrelaçam as mãos e trocam carícias nem reparando na entrada em cena de um agente que os surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-vos, seus pornógrafos! Tarados. – Berra ele.
Avozinho: – Não senhor agente. – Responde ele, ajeitando a peruca. – Isto não é nada do que o senhor está a pensar, nós podemos explicar. Não diga nada à directora do lar.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-vos a prevaricar.
Avozinha: – Nós adoramos cinema – diz ela, depois de ajeitar a dentadura – e estamos a visionar o filme Banane al Cioccolato com a ex-deputada italiana que adora animais, a famosa Ilona Staller. Não conhece? – Pergunta ela com um ar celestial.
Polícia: – Cinema italiano? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que diabo de filme é esse? Eu não estou bem a ver.
Avozinho: – É um filme baseado nos devaneios culinários de uma mulher chamada Cicciolina.
Polícia: – Cicciolina? E isso é arte, é cultura?
Avozinha: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é arte podem continuar a visionar.
A velha tira a dentadura e o velho a peruca e voltam a dar as mãos e a ver o filme porno.


CENA III

Vê-se um casal de latagões gays na marmelada deitados num banco de jardim, um espaço público. Os dois abraçam-se louca e apaixonadamente nem reparando na entrada em cena de um agente que os surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-vos, seus pornógrafos! Tarados. – Vocifera ele.
Activo: – Diga senhor agente. – Balbucia, endireitando-se à pressa. – Nós podemos explicar o que estamos a fazer. Não diga nada aos nossos namorados.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-vos a prevaricar.
Passivo: – Nós somos simples crentes – diz ele – e estamos a divulgar a Palavra de Nosso Senhor. Não conhece? – Pergunta ela com um ar angelical.
Polícia: – Nosso Senhor? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que Palavra é essa? Eu não estou bem a ver.
Activo: – É aquela que diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”; está na Bíblia.
Polícia: – Bíblia? E isso é arte, é cultura?
Passivo: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é arte podem continuar a divulgar a Palavra.
Os gays abraçam-se e continuam aos chochos no banco de jardim.


CENA IV

Vê-se um miúdo deitado na cama já dentro dos lençóis, enquanto lê uma revista os cobertores estremecem de uma forma bastante suspeita e aprazível para o rapaz. Ele nem repara na entrada em cena de um polícia que o surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-te, seu pornógrafo! Tarado. – Bradou ele.
Miúdo: – O quê?! – Questiona, terrivelmente assustado. – Eu posso explicar tudo senhor agente. Não diga nada aos meus pais. – Suplica o rapaz, tapando-se com a roupa da cama.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-te a prevaricar.
Miúdo: – Eu tenho o hobby da fotografia – inventa ele – e estou a aprender com os melhores fotógrafos do Mundo, pois eles trabalham para a Playboy americana. Não conhece? – Pergunta ele com ar de anjinho.
Polícia: – Fotografia americana? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que Playboy é essa? Eu não estou bem a ver.
Miúdo: – É aquela revista que traz muitas imagens da vida animal em estado selvagem, do Hugh Hefner. Ele até tem a Mansão da Playboy que é uma espécie de Jardim Zoológico.
Polícia: – Mansão da Playboy? E isso é arte, é cultura?
Miúdo: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é arte podes continuar a fruir.
O miúdo abre um largo sorriso, pega novamente na revista e volta à carga.


CENA V (FINAL)

Vê-se o intelectualóide numa galeria de arte a admirar uma pintura e está tão profundamente extasiado que nem repara na entrada em cena de um agente que o surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-o, seu pornógrafo! Tarado. – Ralhou ele.
Intelectualóide: – Quem? Eu? – Pergunta aparvalhado. – Eu não estava a fazer nada ilícito senhor guarda.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-o a prevaricar.
Intelectualóide: – Eu apenas admirava esta réplica do quadro pré-cubista Les Demoiselles d'Avignon – explica ele – adoro este óleo sobre tela pintado em 1907 por Pablo Picasso. Não conhece? – Pergunta ele esbaforido.
Polícia: – Les Demoiselles…? Conheço, conheço. – Afirma o agente, em tom de gozo, convicto de que está a ser ludibriado pelo intelectualóide.
Intelectualóide: – A sério, é uma obra-prima exposta em Nova Iorque, é do início do Período Negro deste genial pintor espanhol.
Polícia: – Período Negro vai ter você hoje. Aposto que me vai dizer que essa pouca-vergonha é arte, é cultura.
Intelectualóide: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Isso, para mim, são cinco pérfidas prostitutas descascadas. O senhor violou todas as tradições e convenções legais. Faça o favor de se identificar e de me acompanhar à esquadra imediatamente.
O intelectualóide é arrastado como um diletante da galeria de arte pelo polícia para ser detido, enquanto esbraceja e esperneia tentando explicar-se, sem resultado. E vai de cana.

exercício em dupla: publicidade ao Doce Lima

Luís Gaspar e Vasco Sequeira


Ideia para publicidade à Cafetaria Doce Lima:


Anúncio televisivo (para passar, por exemplo, em ecrãs publicitários do Centro Comercial Oeiras Parque)

- No início, vemos a imagem fixa numa família clássica portuguesa sentada no sofá da sala – pai, mãe e filho – todos à vontade, em pijama, roupão, chinelos ou pantufas.

- Passados uns instantes, o filho aborrece-se e diz que vai para o computador e sai da sala, a imagem continua fixa no sofá da sala – ainda com o pai e a mãe lá sentados.

- Às tantas, a mãe diz ao pai que quer um café e pergunta-lhe se ele também quer. Ele responde que sim e ela levanta-se do sofá e sai do enquadramento – onde já só resta o pai.

- Momentos depois, o pai também se levanta e a imagem acompanha-o. Ele abre a porta da sala – no interior da sua casa – e vê-se dentro da cafetaria.

- Dentro do café já está a restante família: o filho no computador e a mãe atrás do balcão a tirar os cafés para o casal; todos estão vestidos casualmente como estavam há pouco – de pijama e roupão.

- No final pode ler-se o slogan: “Sinta-se em casa no Doce Lima”.

Os espiões portugueses saem do armário


crónica de Carlos Natálio


Em tempos de crise lá se vai vendo uma ou outra notícia que nos deixa mais confiantes. É com grande orgulho que vemos Portugal afirmar-se como país onde a democracia não é só verbo de encher e se pode finalmente espiolhar a vida dos outros às claras. Com dignidade. Falo, claro, da recente divulgação acidental de uma lista com a identidade dos nossos espiões pela Presidência de Conselho de Ministros. Sobre este caso, o motivo de maior regozijo é saber que os hiperserviços de segurança, através do seu hipersecretário geral, fizeram de imediato saber que tudo não passou de um lapso. Na verdade, a lista dos "nossos rapazes" não era para ser divulgada na intranet mas sim na... internet, um espaço relativamente menos aconchegado com considerável maior número de pessoas.
Para mim, é, desde logo, uma agradável surpresa constatar que o governo sabe o que é a intranet - uma espécie de internet mas mais introspectiva, mais Francisco José Viegas. Depois, porque acho que não há um português que não fique a sentir-se mais seguro ao saber que temos um hipersecretário. Ainda por cima geral. Senão quem se reuniria todos os dias com os "ultra-ministros", na sua caverna "pu" trás de São Bento, para resolver os "arqui-problemas" da nação? É trabalho sujo meus amigos, mas alguém tinha de o fazer. Agora já sabemos quem.
Ao que tudo indica a divulgação dos nossos espiões terá sido motivada por um pedido de livre trânsito que daria à nossa secreta o acesso a cantinas, recintos desportivos e espectáculos. Todos nós sabemos que a actividade de espiar é dura e ingrata. Para quem não sabe, a espionagem consiste basicamente na tarefa de viajar por todo o mundo vestindo apenas uma gabardina, um par de óculos e uma pasta, em busca de microfilmes. Tratando-se de empreendimento tão desgastante é normal que de vez em quando precisem de descomprimir e o mínimo que o Estado Português podia fazer era pagar aos seus espiões o jantarito no Chimarrão e o concerto do Demis Roussous a seguir. O que é justo, é justo.
Outras fontes adiantam que este lapso teve origem num processo para a criação de uma identidade secreta para cada espião. Ora, tudo parece fazer sentido, tudo parece bater certo, senão fosse o pequeno detalhe de se ter achado graça à criação de uma identidade alternativa.... através da divulgação massiva da verdadeira. "Ora portanto, o sr. João Fernandes, 35 anos, altura e peso tal, morador na rua tal, a partir de agora passa a chamar-se João "Esquilo Implacável". Tá bom?"
Mas entretanto o sr. João passa a ter de aturar conversas como esta à saída do prédio. "Olha, o Sr. João. Tudo bem? Vi-o na net no outro dia. Fica bem de gabardine... Não sabia que era espião. Que giro! O meu mais novo faz é atletismo. Cada um é para o que nasce. Bom, até logo, prazer em vê-lo." Já para não falar em confusões de identidades que podem levar a que num belo dia de Inverno, o sr. João Fernandes, serralheiro, 50 anos, seja baleado no crâneo com uma 16 milímetros enquanto janta pacatamente com a família e depois lhe seja revistada a panela do guisado em busca de microfilmes. Microfilmes, microfilmes... Mas porque sempre os microfilmes? Não era mais cómodo uma pen, um ipod, um DVD+R? Isto é gente que é info-excluída.
O único senão de toda esta situação é o facto da criação deste novo estatuto para os espiões portugueses ser tão burocrático. Ao que parece o simplex ainda não chegou à actividade da espionagem. É preciso fazer para cada espião uma ficha... com nome... fotografia... morada... Se por um lado facilita a avaliação dos espiões, o que está muito na moda, o tempo que se perde a preencher, a conferir, a redigir, é inacreditável. Aposto que se 007 trabalhasse em Portugal era "praí" o 707, ainda contando com as 10 senhas de tolerância. A não ser que chegasse umas horinhas antes de abrir para não dar chance aos reformados.

O homem do SIADAP

crónica de Pitonisa

Para a maioria das pessoas, a sessão foi esclarecedora. O formadorcomeçou, forçosa e esforçadamente, no seu fato escuro amachucado, pordizer ter orgulho em ser funcionário público. Com ênfase, sorrindo,repetiu-o várias vezes, enquanto tentava estabelecer contacto visualconnosco. Seguiu-se a descodificação, com direito a power point, doSistema Integrado de Avaliação do Desempenho na Administração Pública.De funcionários públicos passámos a trabalhadores contratados emfunções públicas. Trabalhadores. Descobriu-se a pólvora de que devemostrabalhar por objectivos, ou seja, metas mensuráveis de cujo resultadodepende a maior parte da avaliação. A restante parte são oscomportamentos. E estabeleceu-se que ser trabalhador contratado emfunções públicas já não é uma situação vitalícia. O formador repetiu,até à nossa exaustão, a mensagem de que acabou a impunidade dotrabalhador.Até aqui tudo bem, quanto aos valores da organização, datransparência, do brio no que se faz, da responsabilidade a par daautonomia, da importância da avaliação para a melhoria do desempenho eda proporcional recompensa do trabalhador. O problema está na própriadefinição dos objectivos, no cumprimento dos prazos legais das váriasetapas do processo, nas quotas – as quotas! -, na falta de preparaçãode muitos dirigentes - e na sua impunidade -, no facto de não haverhetero-avaliação da base para o topo da pirâmide e na demagogia de porum lado se apregoar que o mais importante são as pessoas dostrabalhadores e por outro se acentuar a obrigatoriedade de gerirsegundo o princípio absoluto de menos empregados para aumento daprodutividade. Eu não acredito numa gestão desumanizada, que não vê otrabalhador enquanto pessoa – esta frase é tão básica que nem deviaser preciso escrevê-la.No final, aplicou novamente a fórmula do seu orgulho em serfuncionário público, gabando-se de a mulher o ver pouco, devido a eleser tão esforçado no trabalho público... Este trintão, que até deveráter um aspecto saudável em fato de banho na praia, este homem, na suailuminação, conseguirá ver mais a mulher do que ela o vê a ele? Maisum homem do sistema, simpático até e com capacidade de comunicação.Dou-lhe nota positiva, que agora se chama… tenho de ir ver à net.A palavra reforma enuncia-se no horizonte do meu imaginário, comonunca supus poder acontecer. Quero trabalhar, mas não com estúpidosnem a servir de acessório ou até brinquedo ao chefe. Portugal tem deavançar e crescer, mas não assim. E estes gestores entusiastas? Têm decomeçar por tomar banho todos os dias, o que não era ali o caso.Apesar de tudo e possivelmente em tom paternalista digo que, comopessoa, não desgostei dele, embora tivesse o cabelo oleoso e esse sejapara mim mais um sinal de falta de credibilidade. Tivesse ele o cabelolavado… não, também não. E ainda em negação, é nestes momentos que melembro dos jovens alunos que tive durante oito anos, a quem nuncaousaria tratar desta forma e pergunto-me: como se chega a isto?Despedimo-nos, após aceso debate em que muitos participámos, tendo-secumprido o objectivo da comunicação, informar as pessoas daquelenúcleo laboral, mas ficando todos a pensar nas atitudes ecomportamentos, no micro do nosso caso e no macro da sociedade.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

a insustentável leveza dos iogurtes


(partindo do exercício 'escrever sobre um objecto em discurso directo', a passar pela coluna de opinião e terminando na crónica - escrita criativa, indeed)


Não estou fora do prazo, mas parece que aqui estou há anos, à espera que alguém me agarre. Trago comigo a impressão de que esta prateleira vai cair. Somos tantos aqui em cima, a olhar as pessoas que empurram cestos com rodas e que param, olham e logo desviam o olhar para paisagens mais coloridas, logo avançam para zonas menos frias.

Somos tantos iguais. Não falamos entre nós; há uma espécie de disputazinha que nos impede de confraternizar. Conheci alguns que foram levados, mas logo alguém vem para preencher os buracos e trazer mais, mais novos do que eu, mais frescos, em lugar de destaque, em promoção, em o-raio-que-os-parta-a-todos.

Quase todos os dias me empurram para o fundo da prateleira. Daqui não vejo grande coisa, mas imagino todas as manhãs que é o meu último dia neste sítio. E está frio e estou apertado mas continuo com frio. Quero saber se é isto, se isto é tudo, se os meus dias vão ser sempre assim. Não serei doce o suficiente? Não estou fora do prazo, mas hei-de ficar azedo da espera.




# – coluna de opinião

A Revolta Silenciosa dos Iogurtes

O que começou como um pequeno desastre num conjunto limitado de hipermercados da periferia de Lisboa, toma agora as proporções de um movimento silencioso à escala nacional. As medidas tomadas até agora pelos estabelecimentos comerciais de média e grande dimensão poucos resultados tiveram; e as pretensões do executivo de José Sócrates poucos resultados prometem.

Se no final do mês passado assistimos surpreendidos ao azar de inúmeros compradores de iogurtes que se queixavam de falta de sabor e, em casos extremos, da acidez e do azedume dos iogurtes e de algumas marcas de leite, hoje já o caso se estende a todos os lacticínios comprados em super e em hipermercados. Testes laboratoriais afastaram a responsabilidade dos produtores comprovando a qualidade dos produtos à saída das fábricas e mesmo após o transporte.

Para este inesperado flagelo, na altura ainda mascarado de azar pontual e tratado pelo governo como fait-divers, as primeiras respostas efectivas foram dos próprios pontos de venda, que substituíram máquinas, ajustaram condições de conservação e observaram novos modelos de reposição dos produtos. Mas continuaram as queixas dos consumidores, que se voltaram para a compra de leite e derivados em mercearias e outros pontos de venda de pequena dimensão.

Quando amanhã se votar na Assembleia pela retirada total dos lacticínios dos estabelecimentos comerciais de média e grande dimensão, está a negar-se a origem do problema e também a proibir as vendas nas lojas de grandes cadeias de distribuição que não foram afectadas pelo problema, como o Continente da Covilhã e algumas lojas Pingo Doce dos distritos da Guarda e de Castelo Branco.

Os anunciados votos a favor do governo e dos principais partidos da oposição recusam a complexidade da questão. Antes de proibir, dever-se-ia discutir por que razão estão os lacticínios a apodrecer nas prateleiras muito antes de atingirem o prazo de validade. E por que razão as lojas de pequena dimensão e alguns estabelecimentos do Interior Centro se mantêm à margem do problema?

Possivelmente, a resposta não está na mudança de condições de conservação, nos novos modelos de reposição ou no decreto de medidas proibitivas. Será que alguém já se lembrou de perguntar a um iogurte a razão do seu azedume?





# – crónica

Tempo de Vacas Magras

Ando a comprar iogurtes como se não houvesse amanhã. De leite não gosto, queijo nem posso ver e a manteiga já me aborrecia pela falta de sabor antes de tudo isto. Trago-os para casa e guardo-os no frigorífico durante uns dias, os dias que forem suficientes para recuperarem a plenitude do seu sabor.

De vez em quando vou espreitá-los e até me habituei a falar um pouco com eles. Abro a porta e fico ali a ouvi-los. Em princípio são lamentos, quase choradinhos sobre a solidão. Depois, aprendo sobre a incerteza da espera, sobre a dor de não se ter futuro. E, finalmente, admitem ter-se deixado tomar por um certo travo amargo do qual sozinhos não se conseguem libertar.

É um exercício simples fazer com que recuperem o gosto pela vida: trata-se de tratar a angústia com um pouco de atenção. É assim que os salvo. E faço questão de comprar parte deles no Continente do Colombo – não concebo iogurtes mais desgraçados. Depois de dois ou três dias em minha casa, estão tão felizes como nunca foram.

Quando comecei esta minha secreta empreitada, não imaginei que precisaria de salvar os da mercearia aqui da rua, que para além de serem mais caros, pensei, estão bem cuidados e passam alegremente o seu tempo a ouvir o merceeiro a esquadrinhar com as vizinhas.

Mas como as pessoas vinham em romaria comprar-lhe o leite e os iogurtes, o homem tornou-se ganancioso e encomendou tanto que até teve de alugar duas garagens nas traseiras do prédio para lhe servirem de armazém. O tiro saiu-lhe ao lado, porque, fechada em garagens escuras com o fétido odor dos escapes mais do que entranhado, a vaca fez-se magra e começou a azedar.

As pessoas deixaram de vir, mas o fenómeno vai-se repetindo pelo país fora. O merceeiro aqui da rua tem agora duas garagens cheias de produto que não vende porque azedou. Antes que ele se decida a mandar tudo fora, ando a comprar iogurtes como se não houvesse amanhã… com o dinheiro com que ele me paga o aluguer da garagem.


Sílvia Otto Sequeira

José Sócrates é mesmo engenheiro


coluna de opinião de Susana Crispim


Descobri há pouco tempo duas coisas que me levaram a ver a nossa governação de um ângulo bem diferente do que tinha visto até à data. A primeira é o método eficaz e implacável que o Governo usa para baixar a taxa de desemprego. A segunda é que afinal José Sócrates é mesmo engenheiro. Estas descobertas são elas próprias algo extraordinário, verdadeiros furos jornalísticos, mas o mais incrível é que existe entre elas uma relação causa-efeito inquestionável.
A primeira revelação deu-se quando, ao dirigir-me ao Centro de Emprego onde estou – pensava eu – inscrita, me disseram que a minha inscrição tinha sido anulada. «Porquê, se ainda não estou a trabalhar?», perguntei. «Porque não devolveu o RSF a manifestar o seu interesse em continuar registada no nosso Centro», respondeu a funcionária com o ar feliz de quem domina estas questões. Estava dado o mote para uma conversa kafquiana que só teria fim quando eu decidisse renovar a inscrição ou levantar-me e ir embora. Como não quero ficar de fora das estatísticas, optei por inscrever-me de novo e agora sempre que noticiarem o número de desempregados em Portugal sei que faço parte dele. É uma versão compacta dos quinze minutos de fama televisiva, mas a mim basta-me. Porém, só depois percebi a real dimensão da coisa. Quem não recebe o RSF não sabe que está na altura de renovar a inscrição, logo não o faz, logo sai da lista de pessoas à procura de emprego. Há também a hipótese de o recebermos, devolvermos e ele não chegar ao destino, e vai dar tudo ao mesmo. Os funcionários do Centro de Emprego têm menos um freguês e o primeiro-ministro esfrega as mãos de contente. Mais fácil só de encomenda.
À palavra “encomenda” associei “correios” e pus-me a pensar porque é que não tinha recebido o tal RSF. Por defeito de formação, assumo, muni-me de imediato da minha lista de contactos em busca de quem pudesse esclarecer-me esta dúvida. Com um simples telefonema fiquei a saber, de fonte segura, o motivo pelo qual muita correspondência não chega ao seu destino. Não, a razão não é ter o código postal errado. A culpa é dos próprios funcionários dos CTT.
Na verdade e como a minha fonte não se inibiu de frisar, basta que um envelope caia para trás de um móvel para que deixe de existir. O mesmo pode acontecer a um postal, e está claro que se for daqueles que ainda por cima não têm selo – como os RSF – o processo simplifica-se.
Assim chegamos à minha segunda e talvez mais marcante descoberta, a de que José Sócrates afinal é mesmo engenheiro. Por mim arrumei o assunto e não aceito mais explicações. Vendo bem, só muitos anos de estudo e a posterior obtenção de uma licenciatura em engenharia levariam alguém a ter a leveza de usar um RSF para resolver um assunto tão importante como o emprego ou desemprego dos portugueses. Está bem que há aqui uma boa ajuda dos empregados dos CTT e até uma quota-parte de sorte, mas não podemos descurar o elevado grau de complexidade da ideia em si.
A partir de hoje a expressão “deve ser obra de engenheiro” tem, para mim, um novo significado e vou abolir o seu uso de forma leviana. E o melhor momento da minha vida após ter feito estas descobertas vai ser quando alguém me arranjar de facto um emprego.

coluna de opinião de Vasco Cardoso

Todas as crises económicas são uma espécie de revólver. Não porque matam a economia - aliás a humanidade já passou por umas quantas e nem por isso entrámos em processo de devolução irreversível. As crises económicas são como um revólver por serem, como qualquer outra ferramenta, algo que faz com que o inevitável aconteça mais depressa. São um catalisador da peneira que a evolução impõe. Claro que este processo de reciclagem tem subprodutos verdadeiramente dramáticos para muitas pessoas, mas não há como fugir dele, e feitas as contas, acabamos sempre por ficar melhor nos períodos pós crise do que nos encontrávamos antes (pelo menos em valores absolutos do PIB).
Uma actividade económica que está a passar por um destes processos de eliminação natural é o da imprensa escrita. Há já vários anos que o sector se encontra a encolher. O número de leitores diminui consistentemente e, com ele, o seu valor enquanto veículo publicitário (a maior fonte de receita). Inúmeras publicações fecham ou são adquiridas por outras de maior dimensão (que pagam para absorver concorrentes moribundos, efectivamente engrossando estruturas já de si obesas) etc. Pior ainda, este é um fenómeno geracional. São os mais jovens que não lêem jornais, e não os mais velhos que estão a deixar de ler. O que significa que o público da imprensa escrita tende para zero.
A indústria tem-se multiplicado em tentativas para apelar a novos públicos, empregando as mais variadas estratégias na tentativa de inverter a situação. Mas os mais novos simplesmente não lêem jornais. Para quê? O jornal é uma coisa lenta, desactualizada, estática e mais uns quantos adjectivos extremamente aborrecidos. Para quê ir buscar um monte de folhas que se escangalha todo se não lhe seguro com cuidado (já para não falar das questões ecológicas) quando posso ler as notícias através do meu elegante monitor TFT?
Para um jovem adulto, habituado a usar um computador como se fosse uma extensão do seu próprio corpo, a internet substitui qualquer publicação. Além disso, estamos já no momento em que a ubiquidade da Web se torna uma realidade: qualquer telemóvel está hoje ligado à rede (a não ser que estejamos no meio do monte, onde dificilmente quereremos ler o Ípsilon). O problema dos jornais é que simplesmente não podem competir com a Web, onde as notícias são actualizadas ao minuto (mesmo ao minuto!). Um jornal tão pouco pode colocar um vídeo ao lado do texto e muito menos me deixa colocar a minha valiosa opinião por baixo do artigo onde toda a gente o pode ler. A internet transformou o jornal num produto redundante que não poderá durar muito mais tempo.
As publicações como o New York Times, que souberem transformar-se num produto digital (estão fazê-lo devagar, mas estão) vão sobreviver e prosperar, transitando para os PC’s telemóveis e dispositivos como o Kindle da Amazon. As restantes vão abrir falência.
Uma mão cheia perdurará enquanto produto de luxo inusitado, para quem gosta de ser excêntrico, apenas para servir de excepção que confirmará a extinção do sector. A floresta amazónica agradecerá.

O triste destino da embalagem de Yop

Deixem-me adivinhar. Querem saber o que faço estatelado na estrada com as entranhas de fora, certo?
Este triste estado a que cheguei, como podem testemunhar com os próprios olhos, deveu-se à selvajaria de um homicida.
No entanto, sempre fui bestialmente azarado, por isso, não estranho ter ido parar às mãos desde condutor, repito, sanguinário “homicida”.
O automóvel, uma árvore de natal ambulante, cheio de luzes fluorescentes, tinha, em cima do tablier, imagine-se, uma Nossa Senhora em miniatura que dançava ao som de uma música irritante e monocórdica.
A música falava de gangues, dinheiro, tiros e de gajas e como era bonito matar um bófia com uma pistola automática.
Com mil diabos! Podia ter ido parar às mãos da Diana Chaves, quem sabe, que me guardaria carinhosamente como recordação, depois de ingerir com prazer o meu líquido branco com sabor a morango, mas não, fui logo servir de snack para o maior energúmeno de Portugal.
Sou bestialmente azarado, já vos disse, não foi?
Além de ser um bimbo de primeira, o condutor era um tipo estranho: Apanhei um valente cagaço quando parámos na estação de serviço.
Lembro-me de ter ouvido tiros e de ver o animal, enquanto corria como um louco, com uma pipa de massa debaixo do braço.
Depois, arrancou a toda a velocidade ao estilo dos “Três Duques”. Caramba, não percebi o que aconteceu mas fiquei meio assustado.
O momento mais doloroso, foi, sem dúvida, quando voei janela fora rumo ao abismo.
Sempre ouvi dizer o cliché “recordamos toda a nossa vida no segundo anterior à nossa morte”.
Primeiro, não é segundo nenhum, mas sim, um oceano de tempo: os bons momentos com a minha família no supermercado, as longas conversas com o Yop ananás e limão, as belas formas da garrafa de Coca-Cola, sempre elegantemente no expositor da frente, a música do comunicador - normalmente eram os Coldplay - que, apesar de gostar da banda, fiquei farto de os ouvir, entre muitas outras coisas que quero guardar para mim.
Vasco CCS

crónica de Marta Spínola

Crescer não é fácil. Dir-me-ão que aos 31 anos já não devia pensar que estou a crescer. E não penso. Recuso-me a avançar mais que até aqui. Pelo menos no que toca a interacção com estranhos na rua, desconhecidos em transportes e shoppings e o ocasional colega de trabalho.
Cresce-se com o que cremos serem premissas: não se mente, não se ofende, não se diz tudo o que se tem vontade. Diz-se bom dia e boa tarde quando se entra nalgum lado, segura-se a porta e dá-se lugar às pessoas mais velhas. Pormenores.
Chegado a adulto abre-se uma porta que desvirtua toda a regra de civismo. É tão inexplicável como repentino, lembra quase David Lynch.
Não se ouvem pedidos de licença ou desculpa, um encontrão é banal e ignorado por quem o dá. Ouve-se falar alto e rir alarvemente. Vê-se mastigar de boca aberta e falar de boca cheia.
É comum o silêncio que se segue a um “bom dia” quando entro no elevador do lugar onde trabalho. Já o digo alto de propósito. E um dia, sonho dizê-lo até ter resposta. Sempre em crescendo, cada vez mais alto. Na falta de uma resposta, tenho caras incrédulas para guardar na memória e me rir de vez em quando.
Se a proximidade for grande – e para o ser basta dizer “bom dia” diariamente a alguém – corre-se o sério risco de ouvir: “estás obesa”, “ficaste muito mal nesta fotografia” ou “comes maçãs com casca? Que nojo”. Apetece responder “ficaste mal nesta minha vida. Adeus” e passar à fase do “falamos o estritamente essencial” que não é transmitida, mas passada eficazmente no formato iceberg.
Depois há regras que na forma como são passadas ou transgredidas são muito mais subtis. Raro será o pai ou professor que ensina que não se fumam ervas e plantas ou porquê. E também costuma ser tão pouco uma regra, que contorná-la quase não parece estar a agir mal. Mas sabendo-se, cai o Carmo e a Trindade - rico filho, que te desgraçaste.
Michael Phelps fumou marijuana e deu início a um festival a que já quase não ligamos do redundante que se tornou. Muito barulho por quase nada é tipicamente americano. Mas haverá pelo mundo fora, muita gente a não crer, a julgar o rapaz que idolatravam há menos que um ano. De certa forma, um filho de todos.
A única diferença que poderá haver é que Michael Phelps e sua caixa-de-ar, das duas uma: exigem um maior consumo ou o efeito é mais rápido – arriscaria quase nulo. De resto não vejo que lhe retire o mérito das medalhas que ganhou.
Depois gosto de pensar que Maradona cheirou linhas de coca toda a vida e é hoje o seleccionador nacional. Indiscutível que tenha sido o maior do seu tempo, mas também Phelps é meio anfíbio e isso levou-o a ter medalhas até ao enfado. Meu. E eu não enjoo com facilidade do ouro.
No limite tiram-se as medalhas a Phelps ou as linhas a El Pibe? Parece-me óbvio que o assunto morre aqui e se deixam as medalhas ao miúdo.
Entretanto, disse-se de tudo sobre um e outro, de preferência do mais novo que é mais recente e mais saudável. Por defeito, fala-se mal e goza-se a desgraça alheia. Vejo Phelps e Maradona rir do alto dos seus milhões.
Diz o Tambor no Bambi, a certa altura, que lhe ensinou o pai: “Se não for para dizer uma coisa boa, então não diga nada”. Tambor não é Confúcio ou Kant. Mas é sábio e acessível a todos desde a mais tenra idade.

A galinha da vizinha


crónica de Helena Pereira


É uma notícia de última hora: A inveja pode ter os dias contados. Terá certamente mais dificuldade em esconder-se, agora que uma equipa de cientistas japoneses descobriu que ela mora no córtex dorsal anterior do cérebro.
Ora já sabemos como isto acaba porque agora que têm uma morada, está-se mesmo a ver que o passo seguinte vai ser quererem eliminá-la de vez. Tudo porque, ao que parece, constataram num dos inúmeros e importantíssimos estudos por eles levado a cabo que: "as pessoas invejosas sentem mais prazer com a desgraça alheia". Parvoíce de facto. Muito mais lógico, isso sim, o sentirmos mais prazer com a nossa própria desgraça (e os masoquistas calados este tempo todo, os biltres).
Sinto-me na obrigação de me insurgir contra estes estudos. De pedir que parem.
Sou pela Inveja. "Tratar" a inveja equivale a criar um marasmo cancerígeno. É que Adão e Eva podem ter posto o mundo em movimento por terem cometido o erro de gostar de maçãs, mas foi a inveja que veio dar o salero à coisa. O décor de interiores é dela. Senão vejamos: se não fosse a inveja iam-se clássicos como os 101 dálmatas e a magnífica Cruela, Deus meu, ia-se a Cinderela e a sonsa da Branca de neve. Se não fosse a inveja, o adultério não tinha o mesmo significado, ninguém faria implantes de silicone, ou tingia o cabelo de louro, o botox nem existiria, e aquela questão do tamanho não importar seria finalmente verdade. O grau comparativo não faria sentido nenhum nos adjectivos, e palavras como maior e mais seriam sarcófagos nominais. Ninguém faria benchmarketing e o Bill Gates não teria criado o Microsoft Windows.
Por Zeus, estamos a falar da erradicação de um sentimento que penou muito para chegar onde chegou. Estamos a falar de um sentimento que vigora como um dos pecados capitais que dá acesso directo ao inferno, com direito a livre trânsito, sauna e banho turco.
Não se destrói assim o trabalho de uma vida.
Já não basta que ela esteja condenada à partida pela moral? A amiga sóbria e chata que aparece sempre no melhor da festa, que aparece no preciso momento em que nos preparávamos para gozar à grande, e que sem mais nem menos, nos manda para casa.
Qual é o mal de gozar os entretantos? Um bocadinho de inveja faz bem e recomenda-se. Mais não seja, dá-nos objectivos. A alguns até, dá-lhes um sentido à vida. Não contará para nada isto?
Sou pela Inveja, já disse.

Este fim-de-semana não escrevi um livro


crónica de Susana Crispim

Assusta-me a velocidade estonteante a que se escrevem e lançam livros hoje em dia. E como se isto não fosse por si só um factor perturbador, fico ainda mais perplexa quando observo a variedade dos assuntos abordados.
Numa rápida passagem pelos escaparates até a pessoa mais distraída percebe que há literatura para todos os gostos: livros ditos light, livros de culinária light, manuais de auto-ajuda, testemunhos de como ser diferente afinal é ser igual, histórias baseadas em factos reais, contos inspirados em vidas incríveis reveladas em programas de televisão, auto-biografias, biografias autorizadas, biografias não autorizadas, relatos de relações amorosas entre figuras que se assumem como públicas, posts dos mais diversos blogs passados a papel; enfim…
E depois há os títulos – que no meu modesto entender só podem ser fruto de longas horas de brainstorming – igualmente desconcertantes. São sempre qualquer coisa do género «O que é uma mulher loura vê num homem moreno», «Como as minhas limitações físicas me guiaram para o caminho da Luz» ou «Eu estive num reality show da TVI e sobrevivi para contar a história».
Com tamanha e tão vasta oferta, quase imagino as conversas entre dois profissionais da literatura – devidamente sindicalizados, é claro – depois de estarem algum tempo sem se ver:
- Então, pá, o que fazes? Já não te via há séculos!
- Eu sei, tenho andado ocupado, este fim-de-semana então foi tramado.
- Ai é, porquê?
- Tive que ficar com os miúdos porque a minha ex tinha trabalho. Bem, mas mesmo assim ainda deu para escrever um livro de contos.
- Isso é que foi, ahm! Olha pois eu estive sozinho e por isso consegui deitar abaixo mais cinco capítulos do meu novo romance.
Surreal? Só talvez um pouco.
Bem, mas analisando a questão de forma prática – até porque ninguém está interessado em grandes dissertações sobre o que quer que seja -, esta produção de literatura com a rapidez de quem avia hambúrgueres no McDonalds explica-se em dois tempos. Primeiro, vivemos em plena era de “choque tecnológico”, em que o mais comum dos mortais tem um computador. Eu, por exemplo, já aderi ao Magalhães. Se serve os nossos ministros, também me serve a mim. O segundo tempo remata a explicação: o software certo e o acesso gratuito à página do Priberam resolvem os problemas da ortografia.
Hoje é tudo fast, os jornais lêem-se entre as estações do Parque e Avenida e não há muita diferença entre comprar um livro ou um detergente para a roupa. Queremos sempre mais, por menos. Afinal oferecem quase todos o mesmo e assim sendo a escolha é 99% das vezes feita em função do preço. No fundo, a avaliação resume-se a isto: «Um romance de quinhentas páginas por dezanove euros? Parece-me razoável. Ah, mas espera aí, este tem setecentas e só custa dezasseis. Afinal levo este».
Pois é, desiludam-se os leitores e duvidem sempre que algum escritor disser que escrever é um acto de sofrimento, de quarentena prolongada e de introspecção profunda. São balelas para conquistar clientela.
Quanto a mim e por mais que me custe, tenho que assumir publicamente e nestas poucas linhas o meu falhanço. Este fim-de-semana não escrevi um romance, nem um livro de contos, nem sequer compilei as pequenas histórias que todos os dias invento e conto à minha filha antes dela dormir. Sou de facto um fracasso, porque este fim-de-semana só escrevi uma crónica.

apresentação de um Yop natural

Sou parecido com o corpo humano e tenho inscritas três letras: “y”, de yogurte e yoga, “o” de oportunidade e “p” de porcaria de objecto que se lembraram de escolher.

Fui concebido com seriedade e entusiasmo, sentimentos esses que pretendo provocar. Sou a forma de um conteúdo, mas não sou o seu apêndice, não. Aliás, sobrevivo ao que contenho. É sobretudo por minha causa que as pessoas consomem o que anuncio. Venho de branco, um branco pérola que liga muito bem com o meu nome: Yogurte Yop natural. Repitam.

Levo uma boa vida: quando estou acordado vejo-me a ser olhado, comentado e anunciado, mas gosto especialmente quando pegam em mim, seja para lerem as minhas letras mais pequeninas, seja para me levarem, logo ali, com o automatismo de uma relação já estabelecida, apesar de ser quase certo que foi com algum igual a mim que houve vivências anteriores. Corrijo: algum dos muitos semelhantes a mim, pois sou único. Quando durmo, em geral no frigorífico, tenho sonhos gelados.

Quando fico vazio, a minha situação volta a mudar e se me reciclarem, recomeça novo ciclo da minha útil existência, que neste caso deu origem a um exercício, humano claro, de escrita criativa.

Mafalda Portugal

o YOP em versos de Paulo Carregosa

O Yop viu um dia
Donzela encantadora
Perguntou com simpatia
“Queres ser minha incubadora”?

Quem és tu nobre Senhor?
Pareces leite estragado
Não me venhas com aromas
Já tens o prazo acabado

Já foste um belo pedaço
Quando eras leite branquinho
Mas agora, que diacho
És mais gordo que magrinho

Meio-gordo sou bela Embalagem
Tu que sois tão radiosa
Não me coloqueis à margem
Não quero voltar à Mimosa

Podeis levar-me a passear
Ele há um sítio tão belo
Para já estou-me a lembrar
Do Pingo-Doce ou Modelo

Vai de retro Satanás
Olha só a piroseira
Põe o aroma de ananás
E vens comigo à Ribeira

A espera


crónica (quase conto) de João Silva

Apanho-me sentado nas minhas coisas, suspenso por acontecimentos onde não posso intervir.
E é enquanto espero por notícias dela, ou de alguém dela, que me cresce no pensamento isto da espera.
Isto de se esperar por tudo e por nada.
Nunca gostei de esperar, principalmente quando não conheço o desfecho das coisas. Mas hoje a espera deu-me para isto. Deu-me para a dissecar.
A espera pelas pessoas. E o que se espera das pessoas, principalmente.
Quando esperamos, vivemos num balão de oxigénio minúsculo com tendência para diminuir. Vivemos intervalos. Retiram-nos os pés do chão e colocam-nos um tecto invisível para também não desatarmos a voar e ali ficarmos. Puxam-nos a gola do casaco na nuca até nos dizerem a muito custo quando a espera acaba
- Prossegue lá.

E é engraçado, porque mesmo quando fisicamente não esperamos, quando não há uma hora, um comboio, alguém a chegar, acabamos por esperar.
Esperamos algo – e muito, por vezes – de alguém.
Esperamos palavras, gestos, meios para os nossos fins.
Expectantes, somos todos comboios que se apanham. Uns mais leves, como os que vão para Torres. Outros mais carregados. Os da manhã, para Lisboa.
Lembro a história de um amigo brasileiro que tentou as dobragens em S. Paulo. O Brasil tem muito mercado para tal trabalho e ele, amante do cinema americano, bom de inglês, arriscou. E arriscou convicto que esperavam muito dele. Esperou e disse-lhe depois o quase patrão no seu brasileiro inglesado:
- Tu não levares o menor jeito para isso.
Esperava outra coisa, esse amigo. E percebeu que, afinal, dele não esperavam nada.
Ou então o velho que vi nas notícias. O que mora na caverna e que não quer nada de ninguém. O velho teve a audácia de não querer esperar nada de ninguém. E ninguém esperou nada dele. Até ao dia em que um entrevistador lhe invadiu as pedras e esperou que ele lhe revelasse os segredos da solidão.
O velho falou pouco, como se esperava.

Espera-se muito dos outros. Demais, até.
É uma espera sem números electrónicos e sem pressas, por vezes. Mas muito mais devastadora.
Eu, dela e agora, espero notícias. As melhores.
E com ela aprendi a não esperar o resto. A manter a cabeça neste momento aqui, em vez de a atirar para o que aí vem a seguir.

Tento fazê-lo em tudo. Mas é difícil para um impaciente, como eu.

Se fizermos o exercício de não esperar nada de alguém, somos surpreendidos. E essa surpresa vale muito mais que os comboios que chegam a horas, os pontos picados antes do tempo e a reunião da hora marcada.
Tudo isso, com mais ou menos certeza, sabemos que vai chegar.
Agora, quem me diz a mim que os outros hão-de me dar aquilo que deles espero?
E é neste preciso ponto de interrogação que chegam as notícias dela:
- Estou curada. – sorri.
E eu sorrio com ela.
Juntos, ensinados por isto tudo.
Mas, confesso, sem evitar esperar pelo que há-de vir.

Casar ou não casar, eis a questão


coluna de opinião de Sofia Oliveira

Há três meses o partido do Governo “proibiu” os seus deputados de votarem SIM na moção do Bloco de Esquerda sobre o Casamento de Pessoas do Mesmo Sexo (CPMS). Há um mês atrás o Secretário-Geral desse mesmo partido apresentou a moção para a sua re-eleição e, pasme-se, um dos pontos é precisamento o CPMS. Não me parece que em dois meses se mude de opinião num assunto desta natureza, diria é que a estratégia estava montada de ínicio. “Votemos agora NÃO para depois avançarmos com o assunto em nosso nome”, provavelmente terá sido este o pensamento e, sejamos honestos, a estratégia parece ter resultado porque se há três meses o Governo tinha todas as associações ILGA’s e afins a protestar, agora essas mesmas associações depositam fé na moção apresentada (isto não quer dizer que estejam cegos por ela).

A discussão sobre o tema está na agenda política e social dos dias que correm e será sempre uma discussão acesa apesar de nem sempre ser inteligente ou coerente. De um lado estão os que defendem o SIM do CPMS e do outro lado os que defendem o NÃO e no meio ainda há a Igreja que, por dogma, está do lado do NÃO mas que, por dogma também, deveria manter-se arredada da discussão, afinal a discussão é sobre o casamento cívil.

No outro dia ouvi num programa de televisão que talvez a razão deste tema ser tão fracturante é a utilização da palavra casamento. Pensei que talvez parte do problema, e só parte, residisse precisamente aí. Ponderei que seria possível chamar-lhe outra coisa mas lembrei-me que aí, com razão ou não, os que defendem o SIM iriam clamar a alto e bom som que isso seria discriminar e o problema manter-se-ia. Abandonei a fonética do problema e debrucei-me sobre a intransigência dos grupos que residem de cada um dos lados da barricada. Talvez este sim seja o maior problema para que este tema seja levado a bom porto. Acredito que a discussão do assunto o possa tornar mais visível e, assim sendo, terá de ser encarado mas para isso é necessário que essas mesmas discussões deixem de ser intransigentes e passem a ser inteligentes.

O NÃO ao CPMS utiliza argumentos que nem ao Casamento de Pessoas de Sexo Diferente possam ou devam ser aplicados, e tentando agarrar-se à impossibilidade biológica de procriar. Do lado do SIM vão-se agitando bandeiras e gritando contra a inconstitucionalidade da constituição. Acredito que o comum dos mortais não possa/deva ser castrado dos direitos mais básicos quer por religião, credo ou orientação sexual mas muitas vezes perde-se a razão pela forma como se travam as batalhas.

Esta discussão vai resumir-se, no fim, a uma luta de poderes. A um braço de ferro em que vencerá o mais persistente. Agora resta-nos esperar pelas eleições porque até lá toda a discussão do tema vai parecer folclore e depois, se o SIM passar, rapidamente aparecerão outras derivantes da mesma agenda, como a adopção.

um YOP versão Lobo Antunes, por Rita Faria

Olá senhor doutor, desculpe vir outra vez incomodar, mas é que os comprimidos que me deu da última vez não estão a resultar, estou pior do que nunca, sinto-me mal, dói-me a cabeça, não consigo dormir. O problema, senhor doutor, o problema é esta roupa, obrigam-me a andar assim por causa do trabalho, já me custa ser tão branquinho, agora este rótulo azul claro, senhor doutor, não consigo suportar, não consigo, é mais forte do que eu, tenho tanta vergonha, porquê este rótulo azul-claro?! Já pedi tantas vez para mudar, mas não me deixam, dizem-me que esta é a farda, a fardamenta, e eu a pedir, eu peço, eu imploro, “por favor, ao menos um rótulozinho azul escuro, ao menos deixem-me usar um azul escuro”, mas eles não, eles lá na empresa a dizerem-me “não vês que se não fores azul claro ninguém te compra, as criancinhas não gostam de ti, as mamãs não gostam de ti, não tens um ar saudável, não convences ninguém”, e eu desesperado, senhor doutor, não aguento isto, é que não aguento, quer dizer, na vida privada sou uma coisa, no trabalho obrigam-me a ser outra, na vida privada ando todo de preto, ponho-me a fumar, qualquer dia ando na droga, e no trabalho é o azul clarinho, é o ser saudável, é o ser queridinho e fofinho, não sei, não aguento, ando de cabeça perdida, senhor doutor, é bom que me ajude, porque eu o azul claro não aguento, eu a vida saudável não aguento, ou o senhor doutor me dá uns comprimidos que resultem, ou da próxima vez que for ao supermercado não há iogurtinho azul clarinho para ninguém, está a perceber, porque se eu me for embora, vou eu e vão os meus colegas todos, e se eu me decidir atirar ponte abaixo, atiro-me eu e atiram-se os meus colegas todos, e depois o iogurtinho para os meninos como é, senhor doutor, como é?! Hã?
Ao menos um rótulo azul-escuro, senhor doutor. É só o que peço. Um rótulo azul-escuro. E mais uns comprimidos, se faz favor.

Entrevista de emprego

o YOP por Bruna Pereira

Pintou o contorno dos lábios com lápis, puxou o rótulo para cima - o que salientava as suas formas naturais de Iogurte com sabor natural derivado de uma falecida queija fresca meia-gorda de cabra bem encorpada - e enroscou bem a tampa antes sair de casa. No anúncio que recortara de um folheto de supermercado que desdobrava agora lia-se, a Arial 16 Negrito, "RECRUTA-SE MENINA IOGURTE PARA FAZER COMPANHIA A SENHORES CARENCIADOS NA PROVÍNCIA". 15 minutos atrasada para a entrevista de emprego, Yop rolou rua abaixo rumo à Rua dos Prazeres, Lote 2.

- Bom dia, vinha pelo anúncio…
- Fáxavor de sentar-se que o chefe de recursos humanos vem já.

Chegou o Toni-flan, bigode cerrado como um dia de nevoeiro de Novembro, e disse, levantando o mindinho e o dedo peludo à procura do capachinho, que lhe causava comichão de manhã cedo, à falta do mata-bicho de caramelo habitual.

- Vamos a apresentações, menina. Estás ainda dentro do prazo? É que me cheira a azedume e não quero aqui problemas com a ASAE. Vamos lá ver esse boletim das vacinas já e data de embalagem!

Yop, que sempre fora pálida de nascença, pelo baixo teor de gorduras, disse:

- Nasci a 13 de Novembro de 2008 e posso ser consumida de preferência até 20 de Junho de 2010.
- Sim senhora, bom material…. Ainda te falta um aninho para o Ecoponto azul e há aqui muita tampa para abrir. Dá aí uma voltinha..

Rica em cálcio, sempre fora muito elogiada pelos seus dotes nutricionais e pelo seu requintado sabor natural, que fazia a inveja de muitos iogurtes cremosos amorangados e com pedaços de pêssego transgénicos. Ela nunca fora adepta de plásticas, era natural por dentro e por fora e vivia longe da febre da silicone na fruta.

- Sim senhora, pá. O lugar é teu!
- E quando começo, senhor Toni-flan?
- Hoje mesmo. O teu frigorífico é o Nr.15. E o primeiro trabalho é com o Dr. Baba de Camelo - 120 quilos constituídos 90% por leite-condensado, natas e uma barriguinha de bolachas de manteiga feitas em forno de lenha.
- Sim, senhor.
- Ah, e não te esqueças de andar sempre com açúcar. Pode haver reclamações e o cliente tem sempre razão. Já sabes como é...

Sair da prateleira

o YOP de Ana Costa Ribeiro
Olá, eu sou o Yop- com y grego (Boa noite, Yop). Sou uma embalagem de iogurte natural, moro na segunda prateleira do corredor do frio, entre as margarinas e as sobremesas lácteas. Isto para mim não é fácil, expor os meus problemas diante de vós, sempre fui tímido. Sou uma embalagem simples, reciclável, preocupo-me coma minha tampa, limpo o rótulo todos os dias, procuro manter-me refrigerado. Mas tudo começou quando reparei que o meu prazo de validade estava a terminar. Senti que precisava de sair da prateleira, conhecer outros corredores. Estava farto de ouvir os Danones e os Mimosas a falar de técnicas de manter a fermentação e como ser levado para os cestos de compras em menos de um rodar de tampa. Há uns tempos interessei-me por uma Activia, que me trocou por um tanso com pedaços. Foi então que comecei a meter-me nesta vida. Quando conheci novos corredores apresentaram-me ao sabão azul e branco que era amigo do WC Pato e do rolo de papel de alumínio. Saíamos os quatro à noite, começámos por jogar à macaca, depois passámos para o Master Mind e foi num instante quando já jogávamos ao Travian. Nessa altura pensei que estava a ir longe de mais e decidi parar. Há duas horas que não vejo se as minhas aldeias estão a ser atacadas. Vou levar um dia de cada vez. Obrigado por me ouvirem.

No melhor pano cai a nódoa, e ainda bem que ela cai


crónica de Rita Faria

A perfeição é uma coisa que irrita. Não descobri isto agora. Bastou-me ler, há anos atrás, um pequeno conto de Sophia de Mello Breyner, “Mónica”, para perceber como a vida perfeita, com amigos perfeitos, casas perfeitas, festas perfeitas, é absolutamente insuportável. E esta é uma constatação que tenho, efectivamente, observado ao longo da vida.
Basta atentarmos no primor de uma Celine Dion, que considero exemplo acabado e paradigmático do que afirmei, para que se confirmem plenamente os efeitos nefastos da perfeição. A garganta esganiçada de Celine Dion, a amplitude da sua voz irrepreensível, os esgares emocionados com que contorce a cara para dar emoção à canção que interpreta, são tudo factores que contribuem para que a perfeição plástica desta mulher pré-fabricada nos faça querer fugir a sete pés. Se eu fosse a Celine Dion, bastar-me-ia ouvir a rouquidão amargurada e, essa sim, plena de sentimento de uma Janis Joplin, por exemplo, para me cobrir de vergonha. E o que dizer da sujidade boémia e alcoólica da voz de um Tom Waits? As magníficas imperfeições deste último não batem aos pontos a perfeição limpinha da Celine Dion? Parece-me bem que sim.
Já na escola me apercebi claramente de que a perfeição é esteticamente muito pouco interessante. Frequentemente descamba até para o puro mau gosto, algo que - como todos sabemos - é imperdoável. Lembro-me perfeitamente de algumas colegas que tive, obcecadas pelo cor-de-rosa e levando a sua obsessão a extremos a que nunca me atrevi. No estojo de lápis destas minhas amigas, figuravam canetas cor-de-rosa, azuis-claras e as imprescindíveis canetas verde-água, que eram utilizadas para embelezar a folha A4 das composições. Escrevia-se uma composição cheia de erros ortográficos e depois enchia-se a folhinha de corações cor-de-rosa, bolinhas verde-água e pintinhas azuis-claras, tudo a bem de um valor estético apurado. Para mais, estas minhas amigas que conseguiam dispor, na tal folha A4, semelhante perfeição cromática, faziam-no sem ficar com um único risco descuidado de marcador nas mãos, algo que sempre me transcendeu e continua a transcender.
Nunca tendo percebido a importância do coração cor-de-rosa e da bolinha verde-água, também não percebo o valor estético da perfeição, que, quanto a mim, e como acima demonstrei com os exemplos de Celine Dion vs Janis Joplin e Tom Waits, não tem nenhum.
Antes de terminar, sinto-me na obrigação de dizer que tenho um objectivo secreto que me levou a escrever este texto nos termos em que o escrevi e que consta de uma simples e modesta tentativa da minha parte de fazer justiça a Kurt Cobain. Há pelo menos quinze anos, eu era uma adolescente dos anos 90 que, como me parece evidente, gostava dos Nirvana. Uma rapariga qualquer com quem conversava, e que eu na altura designaria por “parva”, do alto do seu nariz empertigado (rápida nota para mencionar que esta rapariga era, e com certeza ainda será, muito mais baixa do que eu), declarou não gostar de Kurt Cobain porque “o Kurt Cobain está sempre a dar erros a tocar guitarra”, e além disso “desafina a cantar”. Na altura, fiquei tão chocada que não pude dizer nada. Hoje estou em condições de elevar a minha voz em defesa de Kurt Cobain e de todos os outros imperfeitos que se enganam a tocar guitarra e, pelos vistos, desafinam. Eu digo: sim, enganam-se. Sim, de vez em quando desafinam. São seres humanos. E, por isso, cantam com força e com emoção, como só um ser humano pode fazer. Coisa que a garganta perfeita de Celine Dion não sabe, sequer, o que é, porque a humanidade lhe passa, com certeza, ao lado.

aforismos de Luís Gaspar



- Pulseira electrónica


Só usa uma pulseira electrónica quem já pôs o pé na argola.
A pulseira electrónica é um adereço para quem sai de cena.

- Pornografia

No mundo da pornografia não é preciso ser astronauta para andar sempre num vaivém.
A pornografia é uma fusão empresarial, onde um negócio é absorvido por outro.

- Lenços de papel

Há intelectuais que se assoam com os livros de outros, eu escrevo nos meus lenços de papel.
Os lenços de papel são os melhores amigos do bom adepto e os piores inimigos do mau treinador.

- Lobo frontal

Enquanto o lobo frontal rosna o cordeiro traiçoeiro morde.
O lobo frontal é o único que não veste a pele de cordeiro.

- Silêncio

Desde que o Homem veio para a Terra que o silêncio foi para o espaço.
O silêncio é de ouro quando a palavra é de latão.
Se o segredo é a alma do negócio, o silêncio é a alma do divórcio.
Entre dois verdadeiros silêncios, sonoras mentiras são ditas.
Quando o silêncio impera o bom senso fala mais alto.
Silêncio que se vai traçar o fado.

aforismos de Marta Spínola

Lenço de papel

É um capricho efémero: precisando, quer-se muito, quase ao desespero. Depois, não se quer saber mais dele.

Silêncio

Não é a ausência de barulho, que os há ensurdecedores. Antes o verdadeiro “não há palavras”.

Lobo frontal

O primeiro a uivar de dor.

Pornografia

São despojos de excesso de zelo na elaboração de manuais de anatomia. (tinha acrescentado humana, mas apaguei. Adiante)

Pulseira electrónica:

O laptop da prisão.
A prisão portátil.
Vá para fora lá dentro.

o YOP de Pedro Amaral

O meu nome é Yop, naturalmente. Naturalmente natural, azul, sem açúcar.
Deveria ter orgulho na minha condição de alimento saudável mas há dias em que meto tudo em causa. No fundo não passo de uma coisa que não sabe assim tão bem. Como o Muesli, serradura enfeitada de frutos secos.
A minha postura pomposa de: “Estou mesmo in, aqui ao pé as fibras e do Holmes Place, devias-me beber depois de correr” não aguenta todos os dias.
Muitas vezes tenho de levar com o típico: “ Bota açúcar nessa merda amarga que bebi por engano quando cheguei da noite.”
Sou azul demais, um alimento não deve ser etéreo. Ninguém fica satisfeito depois de beber um pedaço de nuvem.
Quando um indiano há 2000 anos inventou o iogurte no país dos condimentos e do exotismo gastronómico não era em mim que estava a pensar!
Por essas e por outras é que ele anda a vender rosas na rua.

o YOP de Rossana Amador

25 de Fevereiro de 2009,

Ás 18h37 expira o meu prazo de validade. Não tenho grandes feitos de que me orgulhe, não tenho grandes lembranças. Nunca fui o melhor da rua a jogar ao berlinde, o que tinha as botas mais engraxadas do quartel, ou o que lava as casas de banho com uma mestria simplesmente munido de uma escova de dentes. Quando penso nisso constato a inutilidade de numa guerra saber limpar, ladrilho a ladrilho uma casa de banho decentemente.
Nunca fui o pai babado, mas o cabrão que não aguenta a mulher em casa a remoer as dificuldades de inventar uma nova ementa para a semana, e assim sendo, tem uma suplente que não reclama das dores de cabeça e geme bem alto para meter inveja aos vizinhos.
18h37, porque não 18h38, ou mesmo às 18h40? Porque certamente a minha morte é escandinava e entretanto há uma festa vernissage às e 45 e chegar atrasado 1 minuto significa perder a oportunidade de cravar o dente em pelo menos 2 camarões.
Vantagem tive a de me chamar Yop, dava para fazer os trabalhos de casa enquanto o resto da turma os lia ou então chegar mais um minuto atrasado e não faltar á chamada. Não! Estou a ser demasiado benevolente. Há mesmo só desvantagens. A de me chamar Yop e ter que levar com piadas que envolviam a família Von Trapp e o José Figueiras vestido de tirolês.
Posso dizer que evolui, já não convivo com a gritaria da minha mãe a chamar-me para jantar. Aquela que conseguia ser ouvida pelo menos no bairro todo. Só de me lembrar como me arrepiavam aqueles berros à janela “Oh Yop Migueliiiii”, isto enquanto sacudia os tapetes do quarto e lhe batia furiosamente com a mão.
Nunca tive grandes gostos para vestir, digamos que certamente azul e roxo não é grande escolha para o dia em que se morre.
Apenas me questiono sobre o que poderá acontecer. Será que a minha alma se transformará numa nata pastoso, meio esverdeada…ou me virá um gosto a azedo à boca mesmo antes de expirar?

Lembro-me que não tirei a louça da máquina.
18h35.
Batem-me à porta. Fui abrir. Ao contrário do que esperava não era ninguém alto e louro.
Tinha bigode, mãos peludas e ásperas e um certo cheiro a cigarrilhas cravado naquele blusão surrado de cabedal. Entre dentes atirou-me:
- Vamos embora que ainda tenho que levar uma velhota que mora ali na mercearia e apostei com o Evandro que conseguia que ela morresse enquanto tira uma embalagem de tampões da prateleira de cima.

o YOP de Pedro Lavado

Chamam-me isto e aquilo, chamam-me tudo.
Sinceramente, já não percebo nada desta cena. Vamos ao que interessa. Não me chamem iáute. Tá bem?
Sou mais um entre tantos iogurtes indignados. Porquê iáute, se é tão fácil dizer iogurte.
Em Agosto principalmente, com a chegada dos emigrantes, tenho duas alternativas. Ou ponho um tampão nos ouvidos, ou procuro evitar localidades como Fátima.
Vou directo ao assunto, procuro algo diferente, revolucionário. Por isso vou formar o sindicato dos yops. Para quê? Para podermos ir de ferias em Agosto. Porquê? E perguntam mesmo. Já não há vergonha! Pá isto. Já não há palavras. Escandaloso! Então vejamos, há pelo menos 10 anos consecutivos que vocês compactuam com as férias de verão, longuíssimas e a dois, do Prof. Doutor Ferrero Rocher e de seu aluno Claúdio Ramos, ou Mon chérri, ou lá como o professor lhe chama. E agora para nós, nem 15 dias em Agosto. Tenham vergonha!
Ainda por cima nós queremos ir de férias para andarmos envolvidos com com bolachas modernas, doces, divertidas e inteligentes como as Belgas. Para não aturar mais as bolachas domingueiras da Dancake, as da tampa redonda e azul. Tampa azul essa, que é um verdadeiro kinder surpresa, pois tanto pode estar cheia de bolachas, como de agulhas, dedais e outros afins da costura, de uma qualquer pensionista.

sem 'que' - Carlos Natálio

Um homem persegue uma parede. Ou antes, percorre-a mas sempre com o objectivo de apanhar o pedaço de granito colocado mais à frente. E a parede está na diagonal. Como se o homem nadasse enquanto a preenche com o seu corpo. Passa por jaulas e blocos indistintos de pedra e tudo nos soa a uma odisseia. Está colado à parede como se a sua respiração dependesse do contacto com a dureza da rocha. Os seus movimentos dir-se-iam graciosos se a inclinação não lhe desse a condição de um potencial náufrago. A percorrer um barco, com medo do desíquilibrio, com receio de cair ao mar. O mar esse, como uma inspiração de oxigénio nos pulmões.

Um outro homem, também ele cego, também ele de olhar avisado, escuta-o. Está numa sala cheia de cadeiras, como num cinema mas subterrâneo.

Ambos precisam de sair e ver o mundo

Ambos precisam de se conhecer

Mas se isso suceder o primeiro fará cessar a vida do segundo ou o segundo terá uma suave vontade de lhe corrigir o caminho. O primeiro veste roupa. E branca. O segundo, talvez porque é mais cego, ou simplesmente porque segue o primeiro, veste preto.

O primeiro, o menos cego, com frequência passa por uma jaula e espreita para dentro da mesma. Sempre vislumbra as formas de uma rainha e de uma besta. Não uma ou a outra. Sempre as duas. Ao espreitar, conhece pela coroa ou pelo resfolegar acelerado a rainha e a besta no seu interior, encerrados no escuro. Não se sabe se se se conhecem. Nem se se se amam. Nem sequer se se estão mesmo encerrados.

O segundo homem, o mais cego, o de preto, por vezes tem momentos de hesitação nessa conjunta perseguição da parede diagonal. E porquê? Porque tudo lhe parece uma idiotice existêncial. Existêncial ao ponto de nem sequer saber se ele próprio, o segundo, não será apenas a sombra do primeiro. Não raras vezes no mundo o segundo segue o primeiro, não raras vezes no mundo o segundo veste preto e simplesmente não é. Ou melhor, de uma sombra se tratará e nada mais.

Dependendo da saliência da rocha, ora dão a barriga, ora as costas à parede. Se o vento desaparece, sincronizados ,caminham pesadões. Mas comportam-me livres, quase a voar, se o vento os açoita, o filha da puta.

Aliás, convém dizer isto – e isto, a rainha e a besta já o sabem: quando chegar o fim do Inverno e a chuva partir, vai haver um dia, insano, comum, no qual o vento musculado trará a Primavera. E com ele o primeiro sol. Nesse dia, mesmo se a parede tiver ainda muita continuação ao longo e dentro de si, a força do vento trará muito inesperado com ele. Nesse momento os dois homens não saberão como agir. Os pés do primeiro levantar-se-ão do chão levitando e deixarão espaço aos pés do segundo para levitarem também eles. E quando já ninguém esperar muito mais, o primeiro passará a ser o segundo, ou mesmo o último primeiro. E o segundo agarrará com força os ombros do primeiro e passará por cima de si, conquistando uma sombra própria.
Aí, não mais o segundo será tratado como segundo e não mais a besta e a rainha ficarão sós.

No entanto, as jaulas abertas e os números ordenados serão sempre a tentação dos carcereiros e dos matemáticos. Deles e das suas Sombras.

YOP - por Helena Pereira



A maior estupidez que nos vendem em crianças deve ser aquela de que aos olhos de Deus somos todos iguais. Claro que sim. De Deus, talvez. No plano terreno somos todos mais míopes. Deixamos que coisas pequenas, minúsculas mesmo, nos separem. Coisas como nomes, por exemplo.
Podes ser quem quiseres – dentro dos limites da árvore genealógica donde provéns. Nada de confusões.
Que importa que por dentro sejamos todos feitos de leite fermentado? Somos todos iogurtes, sim. Mas a parte do somos todos irmãos, só na igreja é que soa bem. Cá fora é pura utopia.
Não tenho ilusões de qualquer espécie. Sou um Yop, da família Yoplait. Por mais operações de cosmética que possa fazer, jamais serei um Adagio.
Sei que quando o sopro da morte vier ao meu encontro, em vez de derramar a minha alma nos lábios do anjo que nos embala até ao outro lado, terei comigo apenas um rude barqueiro.
É o meu destino.
Se pudesse escolher? Escolheria o beijo mortal desse ser alado indescritível: Soraia Chaves. Não me lembro de melhor maneira para ir.

aforismos - Vasco Cardoso

Pulseira electrónica:
Na terra dos demagogos, a democracia é uma pulseira electrónica da qual nunca nos damos conta.

Pornografia:
A pornografia é o único entretenimento cuja qualidade os espectadores podem medir em centímetros.

Lobo frontal:
Certos exercícios da escrita são suficientemente desesperantes para me fazer cair o cabelo na zona do lobo frontal.

Lenço de papel:
Há quem escreva livros inteiros que facilmente caberiam num lenço de papel.

Silêncio:
O silêncio é o manifesto dos sensatos.

“Eu numa frase”:
Faço questão de ser um idealista, quanto mais não seja, pelo desafio.

O olhar vazio dos barmen


crónica de Pedro Amaral


Nunca ninguém me perguntou qual era o maior sinal de indiferença. De forma visionária e preventiva registo-o aqui: o olhar vazio dos barmen.
Odeio-o tanto quanto o invejo. Odeio-o como àquela manilha seca que sei que nunca vou safar. Invejo aquela carta e quero-a no meu baralho de reacções presunçosas. Gostava um dia de sentir a glória de envergar esse olhar após um argumento falhado.
Sentir será talvez o início da contradição, uma vez que os barmen têm a alma morta como atestado daquele olhar. Pelo menos a partir da hora que passam o balcão, nada mais há que um vazio negro nas suas veias.
O seu posto alto na hierarquia noctívaga dá respeito e crédito, o direito àquele olhar. Vazio, drenado em noites a mudar líquidos de recipientes.
Do outro lado do balcão estou eu, encostado. Grande parte da minha noite inclui vários encontros forçados com o barman, estou-me a cagar - só quero a merda da bebida.
À primeira vista, e antes de reflexão aprofundada sobre este tema urgente, podemos pensar que o barman se acha o James Dean dos copos e gelo.
Quem fala ao barman, o cumprimenta, está automaticamente também um patamar acima da plebe nocturna. Isto motiva ainda mais o ódio do plebeu, ignorado.
Tal conclusão apressada esconde a verdade do drama revelado anteriormente. E quem é desconhecedor do olhar vazio dos barmen é, certamente, daqueles que se enerva e insulta o criado das bebidas. Porque não o vê como é, um criado, vê-se ameaçado na espera, inseguro no seu papel de macho alfa. Quem se pica com o barman está portanto muito mais em baixo na lista das minhas comichões nocturnas, junto dos que tratam de forma efusiva os barmen, tentando apanhar migalhas de atenção, fazer um amigo. Não obstante, continuo-me cagando e à espera da merda da bebida.
A única coisa que recebo detrás do balcão é o olhar de quem distingue uma forma do outro lado de um aquário, mas apenas por dois segundos.
Finalmente ei-la: o olhar vazio do barman converte-se numa alegria alcoólica, fresca.
Dou-lhe a nota com o meu olhar confiante, em modo de aval como quem diz: “Sei que a tua vida é merda, mas vê lá se para a próxima demoras menos.” Para um barman, deve ser o maior sinal de indiferença.

Yop, o Magnífico

Caros,

Eis que os papéis se invertem.
Este Yop que vos aparece à frente pode ser desconcertante, bem sei. Mas mereço este momento.
Agarrei os meus quinze minutos de fama com uma naturalidade que só eu conseguiria atingir. E vou aproveitá-los. Ninguém me colocará uma tampa.
Surjo-vos como um ídolo, com pedestal e orquestra, escondendo habilmente a pele branca, os contornos flácidos do corpo e o humor insípido.
Num ápice, a minha sobriedade e vestuário monocromático ganham novas cores, cores quentes, que me deixam este sorriso cínico junto à saída.
O mais natural nesta minha figura é esta pose. Esta postura fria, embora cheia de alegria interior. Esta saúde plástica dos que se conservam e não se dão à vida.
Finalmente a minha hipótese de me agigantar. É ver-me engolido pelo momento.
Mas não pensem que me basta isto de ser visto, analisado, reverenciado.
Eu sirvo um propósito para além da simples adoração. Eu sirvo para muito mais que umas linhas de elogio e de crítica.
Dou-vos um incentivo constante, como se dá a um cavalo antes do salto.
E, nesta forma curta de viver, vos digo: Aproveitem-me todo.
Depois, quando nos encontrarmos dentro de quatro paredes.
E agora, enquanto espero que me consumam.
João Silva

sem 'que' - Marta Spínola

Um texto sem uma palavra cuja utilização é tão comum como pombos em Lisboa ou ratazanas em Veneza - de onde saiu a alusão a seres imundos, não sei, talvez queira alongar o meu texto sem saber bem como - não me parece nada simples.
Duvido mesmo conseguir fazê-lo até ao fim sem essas três letras me atraiçoarem. Vão infiltrar-se entre as outras palavras e só quando ler alto o vou perceber. Ou nem assim. Só talvez então perceba, como dizia o Emilio Aragon: ‘prueba no superada’ - mais uma associação inexplicável, deve ser da hora.
Não é simples, não. Uma pessoa agarra-se a ela, usa-a como se tivesse uma gaveta, um armário, um contentor cheio! Larga-a a todo o instante e em cada frase, se preciso for. E ela, simples e humilde, sem brilho nenhum especial, saltita nas conversas, e-mails e textos do dia-a-dia
A um canto ficam os primos, pomposos, elitistas, cuja utilização evitamos, não vá sair asneira devido a má aplicação, ou soar presunçoso. Guardamo-los para textos mais formais. Muitas vezes nem isso. É comum ver cujo, os quais e seus familiares metidos desastradamente entre palavras resultando numa frase sem nexo nenhum.
Hoje, dou-lhes permissão para desfilarem nesta folha, a essas palavras cujo uso vou negligenciando preguiçosamente. E das quais o brilho é bem maior em relação ao daquela outra do contentor onde se poderia ler, fosse ele real: só não usar em caso de emergência. É o caso deste texto.

fim-de-tarde junto à mesa da toalha de plástico

5h da tarde. O relógio da cozinha sem pilhas e o fogão por limpar desde a Terça-feira passada, a do arroz de pato com amigos de curso a acompanhar. Lá fora é o final de Inverno a assobiar à porta, a campainha a tocar pelo dedo da mulher do colar de pérolas da Igreja Universal do Reino de Deus e a Dica da Semana a apodrecer na caixa do correio do prédio, em cima das contas da Luz, do Gás, da Água e mais das enfiadas por engano pelo carteiro. Do 3º esquerdo vem o choro do bebé do casal do Opel Corsa vermelho, o Júlio Iglésias sai em FM da janela do lado, a dos cobertores floridos a secar no estendal, e a chaleira ao pé de mim grita, com a água a ferver, pelas 6h. Está pronta a afogar tudo numa saqueta de chá de camomila bem forte, bem quente e com bolachas Maria a acompanhar.
Bruna Pereira

sem que

Pego num banco e sento-me entre os dois. Eles vão contando a história, atropelam-se um ao outro. A estrada estava escura, trazíamos o auto rádio ligado, passavam as notícias das sete, diz o primeiro. Das sete nada, diz o segundo, das oito. Ao longe vimos um carro da bêtê encostado à berma, diz o primeiro. Pirilampos acesos, diz o segundo. Junto a ele, um mercedes espetado contra uma árvore, diz o mesmo. Os polícias eram dois, lanternas na mão, mandaram encostar, diz o primeiro. Havia um terceiro polícia entre as árvores, diz o segundo. Isso para agora não interessa, diz o primeiro.
Encostámos o carro e saímos, diz o primeiro. Deixámos a chave na ignição, diz o segundo. Perguntei, há azar senhor agente?, diz o primeiro. Ambos fazem uma pausa. Procuravam o condutor do mercedes, disse o primeiro de novo. Não encontravam o condutor do mercedes, disse o segundo. Disseram para irmos com cuidado, disse o primeiro. Voltámos ao nosso carro, disse o segundo. Trancámos as portas, disse o primeiro. O carro ainda ligado, disse o segundo. E de repente alguém encolhido no banco de trás gritou, 'Bora! 'Bora!.
Ana Costa Ribeiro

as 5 palavras obrigatórias (em crónica)



Não gostando de futebol, gosto de râguebi. É um jogo honesto, toda a gente se suja e dá pancada e aleijam-se e, enfim, enche-se o olho ao espectador. E também tem uma tonalidade anglo-saxónica que cai sempre bem.
Gosto de râgueby, mas nunca seria capaz de ir a nenhum estádio ver um jogo de râguebi, embora seja capaz de ir à Luz ver o Benfica com toda a convicção, e isto apesar de não gostar de futebol, e isto apesar de nem sequer conhecer o plantel do Benfica, de não lhes conhecer a cara (só conheço aquele que é grego, Karagounis ou Katsouranis, conheço o Nuno Gomes, mas indivíduos tipo Mantorras passam-me ao lado, sei lá quem são, são nomes, apenas).
No fundo, gosto de ir à Luz para cantar. Aqueles cânticos e a águia Vitória arrebatam-me. É o mais próximo que consegui encontrar de um concerto dos Beatles, impossibilidade que já aprendi a aceitar.
Diz-me o meu pai que, dantes, ir ao estádio do Benfica era ainda melhor porque, chuva ou sol, as pessoas traziam comida, rissóis, croquetes, às vezes achavam chouriças e partilhavam com os outros adeptos. Às vezes lá ficavam, enregelados, de luvas, à chuva, mas aquela solidariedade que a gente pensa ser tão típica de Portugal era reconfortante.
Hoje em dia, todo o processo de ir à Luz tornou-se menos popular, mais asséptico. Vai-se de carro, vemos a grande catedral vermelha aproximar-se pela janela do carro, estacionamos e pronto. Vamos para o estádio, cantamos, vimos embora, um pulinho à Fnac talvez, casa.
Resta-nos o cachecol à volta do pescoço.
Gostava de poder comer rissóis e chouriça assada na Luz, mas esta aspiração é talvez como um concerto dos Beatles – não vai acontecer.
Habituei-me a aceitar isto.


Rita Faria

eu em várias frases

Minhas:

Arrumo as malas sem critério, distraída. As malas ficam cheias de roupa que não uso. Quando chegar ao mundo vou sentir-me horrível.

Eu fui tanto, em tantos lugares do futuro.

Doutros:

“Outros que não eu escrevem como falam, mas eu escrevo como me calo.” (Amin Maalouf, O Périplo de Baldassare)

“I don’t like human nature unless all candied over with art.” (Virginia Woolf, já não sei onde)

Sílvia Otto Sequeira

sem que - Rossana

Um café com sabor, com cheirinho, com espuma, com leite, com um chocolate a acompanhar.
Pensei em escolher um café, acabei por me decidir por uma água das pedras pois a conversa avizinhava-se pesada e indigesta. Chegaste atrasado como sempre, depois de uns bons 20 minutos sem responderes aos meus telefonemas constantes ou aos sms em tom de crescente aborrecimento.Cheguei a pensar fazer desenhos no vidro embaciado, mas acabei a folhear a TV7 Dias e a ouvir a conversa do lado. Mal puseste o pé no café lancei-te logo aquele olhar irónico onde se lê "Oh estou tão surpreendida pelo atraso".
O meu discurso estava ensaiado desde a festa da espuma na Zambujeira, já fazia uns bons 3 meses. Ponderei apontar-te os defeitos, fazer o choradinho ou ser seca e ríspida como uma fartura "re-frita" na Feira de Grândola. Sentaste-te, pediste um café. Lia-se Nicola na chávena. Sorriste. Perguntaste-me as trivialidades do costume como se não falássemos todos os dias. Achaste-me estranha, nervosa e diferente...
Ainda aguentei uns bons 2 minutos de sorriso amarelo e mãos trémulas a tentar fintar a questão. Não consegui. Num daqueles silêncios incómodos formou-se um vazio e eu gritei:
- João, beijas pessimamente, o teu hálito é insuportável por causa dessa cárie gigante no dente da frente e todos os meus orgasmos foram fingidos! Mas sou boa actriz não sou?

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Carlos Natálio, dá-nos o contacto do teu dealer



















































































































































































































Olá,

Aqui seguem os Aforismos e outros pensamentos mais ou menos desordenados,

a) PULSEIRA ELECTRÓNICA

Este Verão esteja in (doors).
Rock in Rio: eu até ia.
Pulseira Electrónica: compre já a sua na gift shop de Tires.
Pulseira Electrónica: os deliquentes já têm o seu festival de Verão!

b) LOBO FRONTAL

1. É o lobo que diz à avozinha que a vai comer. E come.
2. Lobo frontal é que pode acontecer se subirmos a serra à noite sem faróis de nevoeiro.
3. Lobo frontal é um escuteiro de meia idade com demasiado pêlo no peito.

c) PORNOGRAFIA


Pornografia: Yes, we can!
Um homem não se mede aos palmos, excepto os de raça africana.
2.1. Um homem não se mede aos palmos, quanto muito mede-se ao palmo.
2.2. Um homem não se mede aos palmos, mede-se aos centímetros.
No dia dos namorados, ofereça pornografia.
Pornografia é o jogging dos sedentários.
5. Juntam-se 25 pessoas numa sala a dissertar sobre criatividade e este é o resultado. Pornografia.
6. Pornografia, melhor que sudoku dificuldade cinco.

Jurei que não punha esta mas lá vai...

7. A Manuela Ferreira Leite... epá...

d) SILÊNCIO

Silêncio é o eco de si mesmo.
Silêncio é ter à disposição um arsenal de sons e escolher a morte de cada um.
Silêncio é que desejamos de Cinha Jardim.

e) LENÇOS DE PAPEL

1. Escrevo o meu diário em lenços de papel. Dia 1: atchim!
2. Lenços de papel são os enchumaços enganadores que temos no bolso das calças..
3. Nunca guardes pacotes de lenços nos bolsos das calças senão ainda podem pensar que tens os testículos desarrumados.