sábado, 21 de fevereiro de 2009

a insustentável leveza dos iogurtes


(partindo do exercício 'escrever sobre um objecto em discurso directo', a passar pela coluna de opinião e terminando na crónica - escrita criativa, indeed)


Não estou fora do prazo, mas parece que aqui estou há anos, à espera que alguém me agarre. Trago comigo a impressão de que esta prateleira vai cair. Somos tantos aqui em cima, a olhar as pessoas que empurram cestos com rodas e que param, olham e logo desviam o olhar para paisagens mais coloridas, logo avançam para zonas menos frias.

Somos tantos iguais. Não falamos entre nós; há uma espécie de disputazinha que nos impede de confraternizar. Conheci alguns que foram levados, mas logo alguém vem para preencher os buracos e trazer mais, mais novos do que eu, mais frescos, em lugar de destaque, em promoção, em o-raio-que-os-parta-a-todos.

Quase todos os dias me empurram para o fundo da prateleira. Daqui não vejo grande coisa, mas imagino todas as manhãs que é o meu último dia neste sítio. E está frio e estou apertado mas continuo com frio. Quero saber se é isto, se isto é tudo, se os meus dias vão ser sempre assim. Não serei doce o suficiente? Não estou fora do prazo, mas hei-de ficar azedo da espera.




# – coluna de opinião

A Revolta Silenciosa dos Iogurtes

O que começou como um pequeno desastre num conjunto limitado de hipermercados da periferia de Lisboa, toma agora as proporções de um movimento silencioso à escala nacional. As medidas tomadas até agora pelos estabelecimentos comerciais de média e grande dimensão poucos resultados tiveram; e as pretensões do executivo de José Sócrates poucos resultados prometem.

Se no final do mês passado assistimos surpreendidos ao azar de inúmeros compradores de iogurtes que se queixavam de falta de sabor e, em casos extremos, da acidez e do azedume dos iogurtes e de algumas marcas de leite, hoje já o caso se estende a todos os lacticínios comprados em super e em hipermercados. Testes laboratoriais afastaram a responsabilidade dos produtores comprovando a qualidade dos produtos à saída das fábricas e mesmo após o transporte.

Para este inesperado flagelo, na altura ainda mascarado de azar pontual e tratado pelo governo como fait-divers, as primeiras respostas efectivas foram dos próprios pontos de venda, que substituíram máquinas, ajustaram condições de conservação e observaram novos modelos de reposição dos produtos. Mas continuaram as queixas dos consumidores, que se voltaram para a compra de leite e derivados em mercearias e outros pontos de venda de pequena dimensão.

Quando amanhã se votar na Assembleia pela retirada total dos lacticínios dos estabelecimentos comerciais de média e grande dimensão, está a negar-se a origem do problema e também a proibir as vendas nas lojas de grandes cadeias de distribuição que não foram afectadas pelo problema, como o Continente da Covilhã e algumas lojas Pingo Doce dos distritos da Guarda e de Castelo Branco.

Os anunciados votos a favor do governo e dos principais partidos da oposição recusam a complexidade da questão. Antes de proibir, dever-se-ia discutir por que razão estão os lacticínios a apodrecer nas prateleiras muito antes de atingirem o prazo de validade. E por que razão as lojas de pequena dimensão e alguns estabelecimentos do Interior Centro se mantêm à margem do problema?

Possivelmente, a resposta não está na mudança de condições de conservação, nos novos modelos de reposição ou no decreto de medidas proibitivas. Será que alguém já se lembrou de perguntar a um iogurte a razão do seu azedume?





# – crónica

Tempo de Vacas Magras

Ando a comprar iogurtes como se não houvesse amanhã. De leite não gosto, queijo nem posso ver e a manteiga já me aborrecia pela falta de sabor antes de tudo isto. Trago-os para casa e guardo-os no frigorífico durante uns dias, os dias que forem suficientes para recuperarem a plenitude do seu sabor.

De vez em quando vou espreitá-los e até me habituei a falar um pouco com eles. Abro a porta e fico ali a ouvi-los. Em princípio são lamentos, quase choradinhos sobre a solidão. Depois, aprendo sobre a incerteza da espera, sobre a dor de não se ter futuro. E, finalmente, admitem ter-se deixado tomar por um certo travo amargo do qual sozinhos não se conseguem libertar.

É um exercício simples fazer com que recuperem o gosto pela vida: trata-se de tratar a angústia com um pouco de atenção. É assim que os salvo. E faço questão de comprar parte deles no Continente do Colombo – não concebo iogurtes mais desgraçados. Depois de dois ou três dias em minha casa, estão tão felizes como nunca foram.

Quando comecei esta minha secreta empreitada, não imaginei que precisaria de salvar os da mercearia aqui da rua, que para além de serem mais caros, pensei, estão bem cuidados e passam alegremente o seu tempo a ouvir o merceeiro a esquadrinhar com as vizinhas.

Mas como as pessoas vinham em romaria comprar-lhe o leite e os iogurtes, o homem tornou-se ganancioso e encomendou tanto que até teve de alugar duas garagens nas traseiras do prédio para lhe servirem de armazém. O tiro saiu-lhe ao lado, porque, fechada em garagens escuras com o fétido odor dos escapes mais do que entranhado, a vaca fez-se magra e começou a azedar.

As pessoas deixaram de vir, mas o fenómeno vai-se repetindo pelo país fora. O merceeiro aqui da rua tem agora duas garagens cheias de produto que não vende porque azedou. Antes que ele se decida a mandar tudo fora, ando a comprar iogurtes como se não houvesse amanhã… com o dinheiro com que ele me paga o aluguer da garagem.


Sílvia Otto Sequeira

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