sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

exercício 'Sketch' - Rita Faria/Ana Costa Ribeiro



(diálogo entre um polícia e senhora de idade que se conhecem e se encontram na rua, enquanto o polícia faz o seu giro)

- Olá, senhor guarda Miguel, tudo bem?
- …aaaaah…. Ó D. São… desculpe lá, D. São, mas a D. São não pode andar por aí assim vestida.
- Não posso? Então mas… porquê?
- Ó D. São, é que isso é uma indecência. Assim, a mostrar tudo.
- Então se eu estou de gola alta e tudo, saia até aos tornozelos, cachecol porque está frio, luvas porque as pontas dos dedos andam sempre geladas e eu sem luvas nem consigo mexer as mãozinhas nem nada, collants grossos de lã porque sem eles nem dois passos dou, enregelada de frio que fico, botas até aos joelhos, gorro para não se me congelarem as orelhas, quer dizer… a mostrar tudo, como?
- A mostrar tudo, D. São! Essa roupa toda justa! Já viu esses collants todos colados à perna? Ainda por cima, uma pessoa da sua idade. Essas luvas sexy… alongam-lhe os dedos… esse cachecol a cair levemente sobre o peito, a realçar a protuberância… é que chama a atenção, percebe, esse cachecol chama a atenção para a protuberância.
- Chama a atenção para a protuberância, como?
- Chama a atenção para a protuberância, D. São, chama! O que é que quer que eu lhe diga? Vai ter de ter paciência, D. São, mas ou vai a casa mudar o vestuário, ou vou ter de a levar para a esquadra. É que, ainda por cima, uma senhora da sua idade com essa roupa, só se for para deixar os homens loucos. É isso que a D. São quer?
- Uma senhora da minha idade? Então mas o sr. Guarda Miguel sabe tão bem que eu fiz 65 anos na semana passada… homens loucos… homens loucos, como?
- Homens loucos, D. São! Uma senhora assim, enxuta, como dizem os brasileiros, toda boa, desculpe lá a expressão mas é verdade, com idade para andar aí aos pinotes, com esses collants todos justos, essas botas altas, parece que quer ir ali fazer quilómetros no Intendente, ó D. São, olhe que francamente, nem me faça falar mais.
- Ai, sr guarda Miguel, o que é que se está a passar? Então mas… eu sou viúva, o sr guarda bem sabe, desde que morreu o meu Jorge que não olho para outro homem, agora o sr guarda põe-se a falar de protuberâncias e pinotes e que eu tenho de mudar de roupa e… sinceramente, não sei.
- É que a D. São, ultimamente, tem andado um bocado para o indecente. E depois, vejo-a sempre com cada livro debaixo do braço que vou-lhe contar… olhe que não a queria a tomar conta da minha filha, D. São.
- Livros debaixo do braço, como, sr guarda Miguel?!
- Sim, por exemplo esse que traz aí, olhe-me para essa indecência!
- Então mas se isto é um livrinho de cânticos à Virgem, pois se eu vou agora para a missa, pois se eu…
- Tá bem, tá, vai para a missa. E acha isso bem, andar por aí com livros sobre virgens? Acha isso bem? Quer dizer, é o collant justo, é a luva sexy, é a virgem, bem, só lhe digo que a estou a avisar, D. São. Mais um bocadinho e vai comigo para a esquadra.
- Mas que livros é que eu devia ter, então… não percebo…
- Ó D. São, uma senhora com ar tão fresco, tão sofisticado como a senhora e não sabe! Leituras decentes, D. São, leituras decentes. Um Marquês de Sade. Um Henry Miller. Um Milo Manara, para entrarmos na banda desenhada. Um D.H. Lawrencezito, a Lady Chatterley, por exemplo. Esse tipo de coisas.
- Ó sr guarda Miguel, mas olhes que eu isso nunca hei-de ler na vida, sr guarda Miguel, olhe que eu conheço esses ordinários todos que me está a dizer e olhe que eu nunca na vida, olhe que eu só do Marquês de Sade li a Justine e jurei para nunca mais, e depois li os 120 Dias e jurei para nunca mais, e depois li a Filosofia da Alcova e jurei para nunca mais, e depois li os Trópicos do Henry Miller e jurei para nunca mais, e depois li o Lady Chatterley e aquela ordinarice da Virgem e do Cigano, e jurei que esse DH Lawrence, meu Deus, que nojo, nunca mais, não me faça chorar, sr guarda, olhe que esses ordinarões eu nunca hei-de ler, se faz favor deixe-me ir para a missa com os meus cânticos à Virgem, sr guarda!
- Ah, ele é isso? Com que então Marquês de Sade é ordinarão? Com que então Henry Miller é ordinarão? Com que então DH Lawrence é ordinarão? Com que então andar por aí a ler coisas sobre virgens e cânticos é que é bonito?! Basta, D. São, vem comigo para a esquadra e é já, e olhe que o collant justinho, a luva sexy, o cachecol a realçar a protuberância vão ter de ir à vida, percebeu? Para a esquadra, presa por conduta indecente, e é já.

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