sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

por vezes cantar


crónica de Ana Costa Ribeiro


Transcrevo as orientações para o trabalho de casa. Escrever uma crónica até 3500 caracteres. A crónica tem mais forma que substância, ao contrário da coluna de opinião. Pesquisar Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade.
Ao fim do dia oiço um programa na rádio com o José Luís Peixoto, diz que quando escreve cria algo que não existia antes, há o carácter inovador, a responsabilidade social, escrever o que a ele lhe parece novo aos olhos dos outros. Tornou-se então claro o tema para a minha crónica.
Preenchi os impressos da candidatura ao ensino superior num dia de férias na praia, ansiando despachar a angústia da decisão sobre o futuro e dedicar-me ao mar, gelados e namoros adolescentes. Nunca antes tinha pensado sobre o assunto. Não sabia o que era ser enfermeiro, tal como a generalidade das pessoas, a não ser que precisem do cuidado de um. Nem mesmo a minha família sabe ao certo o que faço. Telefonam-me a pedir conselhos e às vezes desconfio que acreditam mais nas dicas de saúde dos jornais de distribuição gratuita.
Cheguei agora à conclusão que ser enfermeiro é simplesmente ser pessoa. É aceitar os outros como parte de si. É ajudar alguém a ser independente, a ser capaz de ajudar, a aceitar a diferença, a transição, a capacidade, a incapacidade e a morte. Lembro-me das pessoas que morreram comigo, dos pormenores, o rapaz que me perguntou se iria ali ficar com ele, se a sua cara estava assim tão má, todo ele em edema, deformado, dei-lhe um copo com elixir para bochechar e disse que iria sentir-se melhor.
Ser enfermeiro é ouvir, tocar, elogiar. Por vezes é dizer não, pedir ajuda no momento certo, ler nas entrelinhas. É simples como oferecer água e complexo como um preciso acto técnico. É olhar, com olhos de ver. É estar disponível para compreender e fazer-se compreender. É piscar o olho. Estar lá. É também dar espaço, sair, sentar no silêncio, engolir em seco, errar, voltar atrás. É escolher, intuir, priorizar. É fazer um penteado, agarrar a mão de alguém e dançar. Aprender com os outros. Vá-se embora daqui antes que fique como nós, sussurraram-me um dia.
É limpar, confortar. Tentar não julgar. Assobiar, fazer caretas e também chorar.
É gerir tempo, material, pessoas, informação, espaços, energia. É conhecer o nome dos filhos, preferências alimentares, questionar, telefonar, dar um passou-bem, fazer um trocadilho. Recordo-me agora do meu doente biamputado, sem pernas, que me diz em tom de gozo que precisa de cortar as unhas dos pés.
É correr, contar até dez, ensinar a vestir uma camisola, a tossir, a levantar da cama, a subir uma escada, ensinar a reaprender. É prever.
Ser enfermeiro é estar com o outro em alturas em que o amanhã parece longe, diferente ou pequeno. É dar sentido, colaborar na construção de um projecto de vida. Confiar e desconfiar. É promover o desenvolvimento de competências, advogar, proteger e cuidar. É até por vezes cantar.


Não sei se resultou numa crónica, mas espero que tenha escrito algo de novo.
15 Fevereiro 2009

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