quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

exercício sketchs - saga 'A CENSURA'

de Luís Gaspar


Contextualização:


Este sketch é uma sátira aos recentes episódios de censura, primeiro com o Magalhães (no Carnaval de Torres Vedras) e, dias depois, com o livro Pornocracia (na Feira do Livro Usado de Braga).

Personagem principal:

Um agente policial tipicamente português: castiço, barrigudo, com um farto bigode e ar de bêbado, excessivamente zeloso e burro que nem um chaparro.

Síntese da acção:

A luta cega e persecutória deste polícia (com tiques de censor) contra a pornografia. Pela moral e pelos bons costumes.


CENA I


Vê-se um casal de amantes no escritório – já fora de horas – o patrão e a secretária, os dois já descamisados, comendo-se em posições muito acrobáticas. Os dois estão tão compenetrados na trancada fervorosa que estão a dar que nem topam a entrada em cena de um agente que os surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-vos, seus pornógrafos! Tarados. – Grita ele.
Patrão: – Não senhor agente. – Responde atrapalhado enquanto ambos se compõem à pressa. – Isto não é nada do que o senhor está a pensar, nós podemos explicar. Não diga nada à minha mulher.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-vos a prevaricar.
Secretária: – É que nós fazemos teatro amador e estamos a ensaiar uma peça do famosíssimo escritor indiano chamado Vatsyayana Mallagana. Não conhece?! – Pergunta ela com um ar angelical.
Polícia: – Literatura indiana? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que diabo de peça é essa? Eu não estou bem a ver.
Patrão: – É uma peça baseada num livro de aforismos chamado Kama Sutra.
Polícia: – Kama Sutra? E isso é arte, é cultura?
Secretária: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é cultura podem continuar a ensaiar.
O casal volta a despir-se à pressa e continua no forrobodó.


CENA II

Vê-se um casal de velhinhos no sofá da sala – no lar de idosos – a ver um filme com bolinha vermelha. Entre gemidos e uivos do televisor os velhinhos entreolham-se saudosos dos bons velhos tempos. Os dois entrelaçam as mãos e trocam carícias nem reparando na entrada em cena de um agente que os surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-vos, seus pornógrafos! Tarados. – Berra ele.
Avozinho: – Não senhor agente. – Responde ele, ajeitando a peruca. – Isto não é nada do que o senhor está a pensar, nós podemos explicar. Não diga nada à directora do lar.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-vos a prevaricar.
Avozinha: – Nós adoramos cinema – diz ela, depois de ajeitar a dentadura – e estamos a visionar o filme Banane al Cioccolato com a ex-deputada italiana que adora animais, a famosa Ilona Staller. Não conhece? – Pergunta ela com um ar celestial.
Polícia: – Cinema italiano? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que diabo de filme é esse? Eu não estou bem a ver.
Avozinho: – É um filme baseado nos devaneios culinários de uma mulher chamada Cicciolina.
Polícia: – Cicciolina? E isso é arte, é cultura?
Avozinha: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é arte podem continuar a visionar.
A velha tira a dentadura e o velho a peruca e voltam a dar as mãos e a ver o filme porno.


CENA III

Vê-se um casal de latagões gays na marmelada deitados num banco de jardim, um espaço público. Os dois abraçam-se louca e apaixonadamente nem reparando na entrada em cena de um agente que os surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-vos, seus pornógrafos! Tarados. – Vocifera ele.
Activo: – Diga senhor agente. – Balbucia, endireitando-se à pressa. – Nós podemos explicar o que estamos a fazer. Não diga nada aos nossos namorados.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-vos a prevaricar.
Passivo: – Nós somos simples crentes – diz ele – e estamos a divulgar a Palavra de Nosso Senhor. Não conhece? – Pergunta ela com um ar angelical.
Polícia: – Nosso Senhor? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que Palavra é essa? Eu não estou bem a ver.
Activo: – É aquela que diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”; está na Bíblia.
Polícia: – Bíblia? E isso é arte, é cultura?
Passivo: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é arte podem continuar a divulgar a Palavra.
Os gays abraçam-se e continuam aos chochos no banco de jardim.


CENA IV

Vê-se um miúdo deitado na cama já dentro dos lençóis, enquanto lê uma revista os cobertores estremecem de uma forma bastante suspeita e aprazível para o rapaz. Ele nem repara na entrada em cena de um polícia que o surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-te, seu pornógrafo! Tarado. – Bradou ele.
Miúdo: – O quê?! – Questiona, terrivelmente assustado. – Eu posso explicar tudo senhor agente. Não diga nada aos meus pais. – Suplica o rapaz, tapando-se com a roupa da cama.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-te a prevaricar.
Miúdo: – Eu tenho o hobby da fotografia – inventa ele – e estou a aprender com os melhores fotógrafos do Mundo, pois eles trabalham para a Playboy americana. Não conhece? – Pergunta ele com ar de anjinho.
Polícia: – Fotografia americana? Conheço, conheço. – Responde ele a disfarçar a ignorância. – Mas que Playboy é essa? Eu não estou bem a ver.
Miúdo: – É aquela revista que traz muitas imagens da vida animal em estado selvagem, do Hugh Hefner. Ele até tem a Mansão da Playboy que é uma espécie de Jardim Zoológico.
Polícia: – Mansão da Playboy? E isso é arte, é cultura?
Miúdo: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Se é arte podes continuar a fruir.
O miúdo abre um largo sorriso, pega novamente na revista e volta à carga.


CENA V (FINAL)

Vê-se o intelectualóide numa galeria de arte a admirar uma pintura e está tão profundamente extasiado que nem repara na entrada em cena de um agente que o surpreende.
Polícia: – Ah ah… Catei-o, seu pornógrafo! Tarado. – Ralhou ele.
Intelectualóide: – Quem? Eu? – Pergunta aparvalhado. – Eu não estava a fazer nada ilícito senhor guarda.
Polícia: – Recebemos uma queixa anónima na esquadra e como eu estava aqui nas redondezas vim inspeccionar e apanhei-o a prevaricar.
Intelectualóide: – Eu apenas admirava esta réplica do quadro pré-cubista Les Demoiselles d'Avignon – explica ele – adoro este óleo sobre tela pintado em 1907 por Pablo Picasso. Não conhece? – Pergunta ele esbaforido.
Polícia: – Les Demoiselles…? Conheço, conheço. – Afirma o agente, em tom de gozo, convicto de que está a ser ludibriado pelo intelectualóide.
Intelectualóide: – A sério, é uma obra-prima exposta em Nova Iorque, é do início do Período Negro deste genial pintor espanhol.
Polícia: – Período Negro vai ter você hoje. Aposto que me vai dizer que essa pouca-vergonha é arte, é cultura.
Intelectualóide: – É sim senhor agente, da mais pura.
Polícia: – Hum, ora bem… Isso, para mim, são cinco pérfidas prostitutas descascadas. O senhor violou todas as tradições e convenções legais. Faça o favor de se identificar e de me acompanhar à esquadra imediatamente.
O intelectualóide é arrastado como um diletante da galeria de arte pelo polícia para ser detido, enquanto esbraceja e esperneia tentando explicar-se, sem resultado. E vai de cana.

Sem comentários:

Enviar um comentário