quinta-feira, 9 de abril de 2009

Talvez ainda haja esperança

(exercício metáfora de portugal + crise),

de Susana Crispim


Tinha pensado chegar cedo a casa. Afinal, para o bem e para o mal, dez anos de casamento devem ser celebrados.
A opção pelo último turno de trabalho, das sete às nove e meia, pareceu-lhe ser a melhor: estava sempre despachado um pouco antes das nove e isso ia ajudá-lo a cumprir a promessa. Mas agora começava a verificar que a coisa não era assim tão simples. Estava atrasado, na rua onde tentava estacionar não havia um único lugar e o prédio onde ia entregar as compras não tinha elevador. Já conhecia a D. Aurora há muito tempo, levava-lhe as compras todos os finais do mês e sabia que depois de subir os quatro andares a velhota o obrigava pelo menos a beber uma tisana reparadora. Isto enquanto lhe contava os últimos achaques, a indiferença dos filhos e comentava as desgraças que ia ouvindo nos noticiários da TV. Hoje ele não tinha tempo para isso. Dez anos com a Alice não podiam acabar porque uma simpática avozinha o tinha querido reconfortar com um chá.
«Se chegares depois das dez já não estou cá», dissera-lhe a mulher. «Estou cansada de tudo, não consigo nem sei se quero ultrapassar os problemas, aguentei demais».
«Bolas, Alice, dá-me mais um tempo. Vou acabar com as mentiras, cumprir as promessas, daqui para a frente vai ser melhor!» - pensara António sem dizer. Mas sabia que não valia a pena contrapor. As histórias do passado não o favoreciam e o presente ainda menos. Tinham mergulhado num ribeiro sem pé, sem hipótese de firmar âncora, tudo andava à deriva. Agora já não havia botes salva-vidas, coletes ou qualquer outro objecto que os resgatasse deste afundanço. Neste país costeiro, o seu casamento estava sem amarras que pudesse lançar e fazê-lo agarrar-se à terra. Ia acabar sabe-se lá como.
«Sim, que é?» - uma voz no intercomunicador despertou-o dos seus pensamentos.
«É para entregar as compras à D. Aurora, pode abrir?»
«Ai, Jesus, que não me alembrei de avisar os senhores para não virem. Sabe, é que a senhora sentiu-se mal, foi na ambulância e olhe.., coitadinha…, finou-se assim que chegou lá ao hospital».
«Ah, pois…» - foi só o que António conseguiu responder.
Deixou os sacos à porta, correu para a carrinha e arrancou com o motor ainda aos soluços.
«Alice, espera». Talvez ainda haja esperança.

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