quinta-feira, 30 de abril de 2009

IMPREVISTO, Paula Cardoso Almeida


01 – ext. – ILHA DO PORTO manhã

Uma rua estreita, sem saída. Mais ou menos a meio avista-se um homem vestido com uma bata às riscas e quadrados verdes e brancos, e calçado com umas pantufinhas de lã. Está a varrer vagarosamente o passeio que dá entrada para a sua casa.

CORTA PARA

02 – Ext. – ILHA DO PORTO

Aproxima-se, devagar, um BMW preto que acaba por parar mesmo ao lado do morador atarefado. No interior do automóvel está um homem elegante, vestido de fato e gravata. Os óculos escuros escondem-lhe o rosto, mas o cabelo branco denuncia que já ultrapassou a barreira dos 40 anos.

Raul
Bom dia meu caro amigo.

Vaidoso, passa as mãos pelo cabelo, puxando-o sedutoramente para trás. O morador observa-o timidamente.

Jacinto
Bom dia senhor (com pronúncia do Porto, trocando os bês pelos vês).

Raul
Creio que estou perdido. Será que o meu caro amigo teria a amabilidade de me ajudar? (esboça um rasgado sorriso, exibindo uns invejáveis dentes brancos e alinhados)

JACINTO
(baixa os olhos) Se eu souber…

raul
Talvez saiba. Mora aqui há muito tempo?

Jacinto
Desde que me conheço como gente, senhor. E olhe que já vou a caminho dos 57 anos.

RAUL
Esplêndido! Estou a ver que o destino me apresentou o homem mais bem informado da zona. É um prazer conhecê-lo, meu caro.
Desliga a chave, tira o cinto de segurança e
sai do carro. Aperta mecanicamente os
botões do fato e só depois estende a mão para
cumprimentar o morador.

RAUL
Dr. Raul Pinto.

JACINTO
(limpando as mãos à bata) Jacinto ao seu dispor, senhor doutor. (faz uma vénia)

RAUL
Jacinto… Vou dar-lhe um conselho, meu caro. Um homem diz sempre o primeiro e o último nome, e o título, se o tiver.

JACINTO
Eu não tenho grande coisa senhor doutor. Mesmo o nome só tenho o da mãe porque nunca tive pai.

RAUL
São situações que me partem o coração. Foi por causa de pessoas como você que eu decidi ir para a política. Quero ajudar essa gente que não conseguiu dar um pontapé na má sorte.

JACINTO
Aaaaah! Pensei que o senhor doutor era médico…

raul
(dando uma gargalhada) Meu caro Jacinto, nos dias que correm ser médico não é nada de extraordinário.

JACINTO
(pensativo) E o senhor doutor também aparece nas notícias? Eu não sou doutor, mas já falei na TVI. Sabe lá o senhor doutor as invejas que houve aqui na ilha.

RAUL
Calculo… A conversa está agradável, mas meu caro Jacinto tempo é dinheiro e eu não posso perder nem uma coisa nem outra.

JACINTO
Pois está claro que não. Uma pessoa tão importante como o senhor doutor aqui a perder tempo com um borra-botas como eu.

RAUL
Não se subestime Jacinto pois o meu destino está nas suas mãos.

JACINTO
Nas minhas mãos senhor doutor? (nota-se uma certa inquietação no tom de voz) Mas como é que um pobre coitado como eu lhe pode ser útil?

raul
Meu caro, antes de mais, diga-me se posso contar com a sua discrição?

Jacinto
Peço desculpa senhor doutor, mas não percebi.

RAUL
Oh homem! Perguntava-lhe se você sabe guardar um segredo. Não me diga que aqui no Porto são todos de compreensão lenta? (dá uma gargalha maldosa)

A expressão de Jacinto altera-se ligeiramente.
Recomeça a varrer, mas desta vez apressadamente.
Pára passados dois minutos e fita em jeito de desafio o interlocutor.


JACINTO
Não gosto que falem comigo dessa forma. Eu não sou burro!

RAUL
Pois… Eu sei. Desculpe, mas a minha vida depende daquilo que o Jacinto me contar.

jacinto
Mas eu nem sei se sei aquilo que o senhor doutor tanto quer saber.

RAUL
(com um ar muito sério) Pois bem. Vou contar-lhe tudo, desde o início. Há um mês anunciei a minha candidatura à câmara municipal da Moita e estava tudo a correr muito bem até que na semana passada recebi uma carta em que me ameaçavam de, caso eu não desistisse da candidatura, divulgar um segredo pavoroso capaz de arruinar a minha carreira política.

JACINTO
E que segredo é esse, senhor doutor?

RAUL
Nem eu sei ao certo o que é. Só sei que tem que ver com a minha esposa e que foi algo que ela fez quando ainda era solteira e vivia aqui no Porto.

JACINTO
A sua senhora é daqui da rua, senhor doutor?

RAUL
(gesto de repugnância) Chiça! Você diz cada coisa homem. Não se vê logo que eu sou de outro nível?

JACINTO
Já não percebo nada. Mas então que mistério tão terrível pode ter a mulher de um homem da sua categoria, senhor doutor?



Raul desvia o olhar para o chão, tira os óculos
e faz uma expressão quase tão trágica quanto patética.

RAUL
Ter abandonado um filho

JACINTO
Ai que isso não se faz. É que nem os animais…

RAUL
Poupe-me aos moralismos Jacinto. Neste momento o que eu preciso é de saber se esse rapaz existe e se vive aqui. Depois arranjarei uma forma de o silenciar.

JACINTO
Eu também queria saber muita coisa…

RAUL
Deve ter à volta de 20-22 anos. Pense lá se conhece uma pessoa com essa idade que viva com alguém que não seja nem pai nem mãe.

JACINTO
O senhor doutor Raul é o pai?

RAUL
Você pensa em cada coisa. Claro que não. Se fosse o pai a minha mulher não tinha escondido isso de mim. Irra!

JACINTO
(pensativo) Assim é difícil…

RAUL
Pensei que nestes sítios todos soubessem da vida de todos.

Jacinto
Sabemos aquilo que vemos e ouvimos.

RAUL
Está a deixar-me nervoso homem. Não me está a esconder nada, pois não?

JACINTO
Vocês lá de Lisboa desconfiam sempre da gente, que se calhar até somos mais honestos. Se o senhor doutor ao menos me dissesse como é que o rapaz se chama.

RAUL
(visivelmente irritado) Porra! Você é uma pessoa muito complicada. Acha que se eu soubesse o nome dele estava aqui a fazer conversa consigo?

JACINTO
(a entrar em crise psicótica) Pois, e eu sou um caralho de um Deus. Vou meter o dedo no cu e adivinhar como se chama o filho que a puta da tua mulher abandonou.

RAUL
(completamente embasbacado) O Jacinto sente-se bem? É que me parece um tanto ou quanto alterado. Eu só quero saber quantos jovens de 20 anos é que há aqui na rua e vou-me logo embora.


jacinto
(rindo desalmadamente) Já sei. Só um momento senhor doutor que eu vou ali à minha casinha buscar a lista e já volto.

corta para


03 – Ext. – ILHA DO PORTO
Jacinto deixa cair a vassoura. Está completamente histérico.
Aos pinotes, embrenha-se por uma reentrância
labiríntica que dá acesso a um conjunto de casas.
Não demora mais dez minutos. No regresso,
de sorriso em riste, traz um papel na mão.
Raul está ansioso e estupefacto, ao mesmo tempo.

JACINTO
Tcharã. Cá estão eles. Agora é só escolher. (sacode o papel, segurando-o por uma ponta, como se estivesse a aliciar Raul a arrancar-lho das mãos)

RAUL
Dê-mo se faz favor.

JACINTO
Não sei se dê, o menino Raul está a portar-se muito mal e eu gosto que me peçam com jeitinho.

RAUL
(suspira enervado) Oh homem! Não me deixe nesta ansiedade.

JACINTO
(estende a mão, decidido) Aqui está.

RAUL
Mas…Mas… Mas isto é um talão de supermercado. (trémulo)

JACINTO
Não, não. Isto é a resposta que o senhor presidente da câmara procurava. Não queria que eu o ajudasse?

RAUL
Tem razão. A culpa é toda minha. Eu é que não devia meter conversa com malucos.

jacinto
Vai-te foder meu grande filho da puta. Tu é que não bates bem dos cornos e o louco sou eu?

RAUL
Já percebi que cometi um erro ao confiar na sua boa fé.

JACINTO
(volta a pegar na vassoura) Pensas que por falares bonito és mais do que eu? Pois fica a saber que és o maior monte de merda que já apareceu por aqui. Drogados e bófias passam por aqui todos os dias, mas políticos cornudos é a primeira vez.

RAUL
Não me insulte por favor. (põe os óculos) Bem, foi um prazer falar consigo Jacinto. Voltarei um destes dias, com um detective particular, para acabar o que comecei.

JACINTO
Estás a gozar comigo meu filho da puta. (levanta a vassoura em tom de ameaça) Eu já não te disse quem é o filho bastardo da galdéria da tua mulher? (gritando)

RAUL
(ignorando) Bem, até à próxima, então.

JACINTO
Isso, põe-te nas putas antes que te dê cabo do cagueiro.


Desanimado, Raul aproxima-se do carro, que está completamente sujo de excremento de pombas. Abre a porta, senta-se, aperta o cinto de segurança e liga a chave. Amarrota o papel que Jacinto lhe havia dado e atira-o pela janela. Recosta-se no banco por uns instantes e arranca. Pelo retrovisor avista Jacinto a acenar-lhe e a curvar-se para fazer uma vénia completa. É quase hora de almoço.



A rua está deserta. Vê-se um miúdo a passar pelo local onde há instantes estava estacionado o BMW preto de Raul. Um papel caído junto a uma tampa de esgoto chama a sua atenção. Abaixa-se para o apanhar e, curioso, desembrulha-o. De um lado está uma lista de compras. Do outro lado, lê-se numa escrita hesitante: AS PAREDES TÊM OUVIDOS E EU NÃO QUERO QUE DIGAM QUE EU SOU BUFO. É O NETO DA VELHA DO N.º 73 SENHOR DOUTOR. ASS: JACINTO DORIA, 4º CLASSE.


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