quinta-feira, 30 de abril de 2009

Do outro lado do espelho

O Rei sorriu, triunfante. Em boa hora faltara à Cimeira dos Estados Mais ou Menos Unidos da Europa para ir ao Congresso do Partido Praticamente Único. Fora recebido em braços e com gritos ululantes e manifestações de adoração, como se fosse uma estrela Rock. Até os carecas se haviam descabelado, em convulsões de “Sois Rei, sois Rei, sois Rei!”, o que era redundante, pois não havia dúvidas de que ele era o Rei, mas não deixava de ser simpático. Muito mais agradável do que ter que passar um dia de chuva, rainy day, na capital sorumbática dos Estados Mais ou Menos Unidos da Europa, em debates chuvosos e deprimentes de temas not so sexy como a falência do sistema financeiro mundial ou o descalabro da economia real. Depressining, esta história da economia real. No seu reino há muito que não havia economia real, coisinha brega, como diria seu irmãozão Lula, coisa de technologycally challenged…
Não, não tinha errado em não comparecer, deixando a sua cadeira vazia, empty chair, naquela cimeira deprimente e desnecessária, desde logo porque, no seu bonito reino feito à sua imagem, semelhança e escala, não havia sequer vestígios da turbulência económica que assolava o Globo, na sua globalidade. Abençoada excepção! E tudo, passe a imodéstia, graças a ele, the King! No seu reino, desde o raiar do seu esclarecido despotismo, que o povo (um dos aspectos mais desagradáveis da governação!) no seu conjunto, havia sido nivelado por baixo, pelo seu denominador mais ínfimo, pelo que não havia quebras do consumo a registar, pois o dito consumo há muito que havia sido consumido, como o Rei manda! It’s good to be the King!
Olhou-se no espelho e sorriu com todas as veneers que tinha na boca. Tinha sido eleito o mais belo rei dos Estados Mais ou Menos Unidos da Europa, e com toda a justiça, “if I dare say so (and I dare say so…”), porque era lindo. Em inglês técnico diria que era beautiful, overwelmingly beautiful, e estaria a pecar por defeito. Ah, ele e a sua inexplicável modéstia!...
No Congresso, os seus seguidores incondicionais do Politburo do PPU, o seu governo pupeteer e restantes “aparatchiques” tinham entrado em convulsão e histeria. Só mesmo Mick Jaegger e ele sabiam o que custa ser verdadeiramente belo e semear a adoração incondicional, para não falar do unconditional love nas mais vastas e diversificadas multidões.
À saída, a incauta e nada esclarecida populaça, um agregado indiscriminado de professores, enfermeiros, tractores e agricultores, para não falar dos infectos dos doentes, que se deveriam confinar às suas respectivas listas de espera, tinha cuspido entre dentes, entre os dentes que lhes faltavam a todos e a cada um deles, “disgusting!” um atoleimado “O Rei vai nu!”. Figure that! Disparate! Pois se o Rei veste Armani e calça Prada!
Na sequência do incidente e sempre com a pedagógica finalidade de educar o seu pequeno povo que não se educa nem se deixa educar, o Rei, kind, kind King, já preparara, numa sleepless, sleepless night, um decreto que aumentava as taxas e alargava o âmbito da matéria colectável, reduzindo, de uma só penada, as possibilidades de dedução à colecta. Era nestas noites sem sono que invejava Estaline e a liberdade criativa de que o Paizinho da URSS usufruíra de poder assinar sentenças de morte para chamar o sono! De certeza que dormiria como um bebé, depois de umas centenas delas assinadas. Agora, e no já não tão dealbar do segundo milénio, graças às inconvenientes incongruências dos tempos modernos, o Rei só podia redigir e assinar decretos e portarias regulamentares, pelo que privilegiava e acarinhava de uma forma consistente os de cariz fiscal. Lollaby, lollaby…
Sorriu, outra vez. Que bonito era! Que lindo teclado, que belo nariz, que lindo queixo! Mas, mais bonito que o seu belo físico, se possível, era o seu cérebro privilegiado, para não falar da sua alma compassiva. Gostava tanto, mas tanto dos pobrezinhos, que não se cansava de fazer novos pobres, em catadupa, torrentes, favelas, chusmas e paletes deles.
Era bom ser Rei daquele pequeno enclave de prosperidade, o único sítio do planeta que escapara ao efeito dominó dos esquemas de Ponzi dos Bernies Madoffs e afins. Naquele mundo conturbado, de falências, insolvências, carências e turbulências, o seu little kingdom rectangular era um porto seguro ─ um verdadeiro “freeport”, em inglês técnico ─ um oásis onde tudo seguia como dantes, no quartel de Abrantes, sem necessidade de recorrer a silly things como pacotes de estímulo, veja-se o desperdício…
“Salvem-se os banqueiros, nivele-se o povo, I dare say!” ─ regurgitou regiamente o Rei, no seu inglês tecnicamente flawless, regozijado e reverberante, olhando a sua real reflexão, sem saber que, do outro lado do espelho, o seu governo sombra e na sombra espiava os seus every mooves, tentando adivinhar as suas every moods, com bajulação e temor reverencial. Não seriam eles que chamariam a real atenção para o facto de que, no Reino encantado, Enchanted Kingdom, grassava a penúria económica, brotavam desempregados como incómodos cogumelos venenosos, faliam as empresas e as instituições e crashava a dita sociedade civil. Viviam num Virtual Kingdom, as simple as that, tão simplex quanto isso, e a realidade era depressing demais para ser enfrentada. Long live the King!


PS (no sentido de “post scritum”, that is): Este texto trata, como é óbvio, de Portugal e a crise.
Ana Sequeiros

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