quinta-feira, 30 de abril de 2009

exercício: juntar numa cena a minha personagem com outra

Antes de começar, a síntese da personagem da Susana Crispim:

Jorge de Couto Galvão, 42 anos, solteiro, bom aspecto, advogado mas sem muito advogar. Vive com o pai e a tia no Chiado. A mãe morreu no parto (lacunas na educação, imoralidade) e ele nunca viu um retrato seu. Jorge vai a festa, leva mulheres para casa. É egoísta e interesseiro, mas agora está apaixonado.



Na Rua do Alecrim

“(…) do Chiado ao Cais do Sodré só dista a Rua do Alecrim.”

Frank subiu a pé, contra os funcionários que começavam a descer para o Cais do Sodré. Alguma das duas igrejas lá em cima havia de assinalar as cinco horas. Ainda não, ainda não. Apressou o passo e entrou a correr no edifício novo do tribunal. Os sinos começaram a tocar nesse instante e Frank pára, absorto, em frente à escadaria, a recuperar o fôlego e a ajeitar o uniforme, tonto da corrida, incomodado com o tocar violento dos sinos das duas igrejas, frente-a-frente pouco acima, já no Chiado, que pareciam competir pelo marcar das horas que passam. Imaginou que alguém que não conseguisse perceber que um sino era do Loreto e outro da Encarnação podia pensar que eram dez horas, em vez de cinco. É o seu novo uniforme de polícia, mesmo imoralmente suado, que impede as pessoas que por ele passam de lhe perguntarem o que faz ali especado. E daí pensou também que as dez horas já não têm esta luz de fim de tarde que passa pelas janelas do tribunal, uma luz que parece descer a rua como os funcionários do tribunal e cair no rio, enquanto se faz a noite. As dez horas têm de ser as da manhã… E de tanto pensar, pensou que ouvia uma música “leve, breve, suave/canto de ave”, lembrou-se do poeta na esplanada, a escrever sobre as igrejas que se defrontam de hora a hora. E de tanto pensar, ali parado no corredor, caiu num desvario, transe da corrida, do cansaço, da tensão dos últimos dias. Para piorar, viu flores e pensou que morreu. E estava assim, parado, a pensar que gostava de ser velado lá em cima no Chiado, quando um toque no ombro veio despertá-lo:
– Não tenho muito tempo. Diga ao que veio.
À sua frente, o doutor Galvão, com um grande ramo de flores na mão. Impaciente, de sorriso em espera. Frank pensou que o doutor havia de ir sentar-se na Bénard com uma bela senhora e a beleza dela e este ardor que traz de a ver não o iriam permitir reparar nos sinos que tocam a dobrar. Frank recompôs-se. Chega de desvario. Respirou. Estava vivo; as flores não eram para o velar.
– Dois minutos, doutor.
– Diga.
Hesitante. Como explicar? A palavra alhada parecia-lhe pouco.
– Eu… bem… eu acho que me meti numa alhada.
– Uma alhada legal?
– Mais uma alhada moral…
– Então vá falar com o padre que eu não tenho muito tempo.
Pensa que talvez esteja a cheirar mal e encolhe-se de vergonha. Mas logo se concentra no que o trouxe e insiste:
– Doutor, é importante… não sei a quem mais recorrer.
– Vá, desembuche, homem, que eu tenho de me ir embora.
– Bem… sabe o tipo que trouxeram ontem? Eu estive a falar com ele lá em baixo na esquadra e acho que ele é inocente…
– Inocente, humm? Mas foi você que o trouxe, não foi?
– Fui, mas a conversa do homem… pareceu-me mesmo… sabe… tenho quase a certeza de que ele é inocente…
– Mas diga-me lá, o que é que disse o júri?
– Culpado. Vai para Tires.
– Então deixe a justiça funcionar, homem, e não pense mais nisso.
– Mas, doutor, eu falei com ele. Ele não fez nada de mal.
– E o que é que você quer fazer agora?
– Não sei, pensei que o doutor talvez me pudesse ajudar. Não sei bem o que fazer.
– Homem. Você acabou de chegar, ainda não conhece como é que as coisas funcionam. E está a deixar-se afectar. Não deve deixar isso acontecer. Você fez a sua parte: soube de um crime e avisou as autoridades. A partir daí, já não é consigo.
– Não foi bem um crime…
– Não foi? Então foi o quê?
– Foi conduta suspeita.
– Mas o júri condenou-o, não foi? Então vai dar ao mesmo.
– Mas, doutor… doutor, puseram-me frente a frente com ele. E eu acho que ele não faz mal a uma mosca.
– Homem, mas você não tem de achar nada. Se o júri condenou, está feito, está acabado. E você tem de se deixar destas conversas, senão ainda o denunciam a si também. Onde é que já se viu estar a defender um criminoso? Componha-se, homem! Você agora é um dos nossos.
– Desculpe, doutor, mas pensei…
– Não pense mais. Não quero ouvir falar mais nesse assunto. Nem a si nem a ninguém, percebeu? Vá, componha-se. Assunto arrumado. E agora tenho de me ir embora. Uma boa Páscoa para si, homem.
– Obrigado, doutor, desculpe doutor, para si também.
Viu-o sair e ficou a vê-lo subir o resto da rua até ao Chiado. Parecia levitar. Frank invejou-lhe a leveza e pensou que o doutor Galvão era bem mais velho do que ele. Deve ser uma questão de atitude, pensou. Ou então é o dinheiro que os impede de envelhecer. E de pensar duas vezes em certos assuntos. Ou então é a beleza das mulheres que apaga o resto. Ou então sou eu que sou um asno. Virou-se e desceu. Ia ainda pesado, mas era levado pela multidão de funcionários que continuavam a sair das repartições e a descer em direcção ao Cais do Sodré.

Sílvia Otto Sequeira

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