quinta-feira, 30 de abril de 2009

a meio da noite



Um quarto de hospital.
Cama e mesa de cabeceira.
Um cadeirão.
Paredes cinzentas.
No tecto, um candeeiro de
globo.
Só um doente.
Uma enfermeira, sentada
na borda da cama, fala com
o doente. Às vezes pega-lhe
na mão, põem-a no seu joelho,
e faz-lhe uma festa.

Enfermeira – Olhe, vou-lhe fechar a luz, é quase noite. A meio da noite venho vê-lo.
Doente – Sabe, em toda a vida, a senhora enfermeira foi a única mulher que eu vi a meio da noite. A minha mãe, a memória não chega lá.
Ef – É impossível. Eu sei que o senhor é solteiro, mas é uma pessoa tão meiga, tão interesante.
Dt – Você disse que era impossível? Mas foi possível. Tão possível que me aconteceu a mim. Um amigo meu – chamava-se Vicente – teve um desgosto de amor. Como uma gripe. A seguir andou a tentar perceber porque razão as pessoas se aproximam e separam. Acabou por ir para Amesterdão, porque, dizia ele “lá posso ser qualquer um que decida ser. Nada me define para sempre”. E tinha razão.
Eu fiquei por cá, senhora enfermeira. Andei toda a vida sem pensar sequer em definir-me. Como uma gaivota à superfície da água que não pensa quando irá para terra ou quando voará para o ar.
Nunca quis decidir nada. E fui assim até hoje. O Vicente foi à procura de uma coisa que eu nunca pensei sequer procurar.
Tive uma vida simples. Não tive conflitos, nem valores. Só sentimentos.
Vivi sozinho. Às vezes visitava a família e nada na minha vida mudou a partir dos vinte anos. Para trás, era mais complicado falar. Mas desculpe enfermeira, estou para aqui a confessar-me. Com a sua mão na minha. Você é o padre, eu sou o moribundo.
A enfermeira sai para o corredor e
fala com uma colega.
Ef- Esteve-me a contar a vida. Está lúcido, mas diz coisas que não percebo. Aqueles olhos, Joana, ao mesmo tempo agudos e toldados – ele diz que sempre teve um olhar incompleto - (isto por exemplo, não percebo), o sorriso que me faz quando abre os olhos e fala comigo, provocam-me uma sensação que me choca mas me agrada. Nunca me aconteceu isto. Gosto tanto de lhe pegar na mão.
A enfermeira volta a entrar e
recomeça a falar com o doente
Ef – Vou fazer-lhe a última festinha de hoje e fecho a luz.
Dt – É, sempre tive as mãos assim, abertas. Dá ideia que não querem agarrar nada.
Ef - Vá lá, não seja filósofo. Uma vez vi um artigo seu no jornal.
Dt – Oh! Escrever! Foi para isso que andei na escola. Escrever é usar bem uma caneta.
Ef – Antes de fechar a luz, desculpe, mas queria dizer-lhe uma coisa. O senhor provoca-me uma sensação estranha, mas boa. Não percebo mas há qualquer coisa – não sei se é a sua franqueza – que faz com que eu deseje pegar-lhe ao colo, como a uma criança, não me leve a mal, é ternura por si. E embalá-lo até o adormecer.
Mas que disparates, vou é fechar-lhe a luz.
Dt – Adormecer, já sinto esse sono. E também eu sinto uma sensação de embalo. Você parece-me uma mãe que atrasadamente me embala.
Desculpe, mas estou cansado.
Ef – Durma, durma senhor Fernando. Qualquer pessoa, quando está doente, deve tentar é descansar e não pensar em nada.
A enfermeira sai.

E Fernando Pessoa adormeceu definitivamente a meio da noite.

António Oliveira

Sem comentários:

Enviar um comentário