quinta-feira, 30 de abril de 2009

o fato imaculado


D. Aurora da sua janela viu-o crescer. Lembrava-se dos joelhos esfolados, a camisão fora dos calções, o jogo da bola com os amigos.
Via-o chegar da escola e, fanfarrão, contar aos amigos feitos e tesouros que só em sonhos teria.
Recordava a ida para o liceu, esforçada ainda que sempre um pouco atrás dos outros. A entrada para a faculdade, as namoradas.
Observava D. Aurora o esforço dele por esconder as suas dificuldades: as correrias das aulas para o emprego nocturno, as mentiras para que ninguém soubesse que vivia acima das suas possibilidades.
Um dia, sentindo-se a avó que ele nunca tivera abordou-o, ofereceu-lhe ajuda. Altivo, ignorou-a. Já na altura, D. Aurora percebera que todos sabiam que aquele pobre era como na história do rei vai nú: só ele ainda acreditava no que queria parecer aos outros.
Deslumbrado, seguira os mais fortes, mais ricos e poderosos, em vez de se aliar aos que como ele poderiam ter ajuda sem nada mais em troca que o rótulo de miserável.
Agora ali estava ele. Adulto, pobre. Continuava a ver os amigos de sempre. Pobres eles também agora. Não tinha a quem recorrer e pior, a quem seguir o exemplo.
D. Aurora só podia sentir pena daquela alma vaidosa que apenas se preocupava em parecer. A última vez que o viu, estava num fato impecável. O cabelo desalinhado, a barba por fazer, adivinhava-lhe os bolsos mais que vazios, rotos. Mas por fora, o fato imaculado.

Marta Spínola

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