quinta-feira, 30 de abril de 2009

A despedida de (He)Lena



conto de Ana Costa Ribeiro

Encosto-me ao tanque de lavar roupa e calço as botas que trago na mão. Ao longe reconheço um vulto. Um homem cava a terra, segura uma enxada, repete o movimento. É madrugada ainda, corre uma neblina, ouvem-se chilreios e água que segue numa levada. Está frio, trago as mãos nos bolsos. Desço à terra pelo carreiro. É o meu pai que cava lá em baixo. Quando me vê suspende o movimento da enxada, segura-a com uma mão, mais parecendo que é agora a enxada que o sustém a ele. Tira o chapéu e limpa o suor da testa com as costas da mão.
Estou a arranjar o caminho para as águas das chuvas correrem. Antigamente aquele era um campo de milho, no terraço escolhiam-se maçarocas, algumas abóboras estão alinhadas no muro, parecem guardiãs da terra, servem de pouso aos melros. Ninguém faz isto por mim. O meu pai já não tem a força que tinha, mas alguém tem de continuar a calçar as botas. Noutros tempos os caminhos andavam sempre arranjados. Dou-lhe um beijo e ele volta a colocar o chapéu. Desculpa ter-te feito vir aqui abaixo.
Regresso a casa pelo mesmo carreiro. Tenho a mala à porta desde ontem à noite. A minha mãe ainda está deitada, sei que não dorme porque a ouvi mudar de posição na cama. De noite os ruídos são projectados um mar de vezes, uma gota que pinga da torneira, o gato que desce do peitoril da janela, a madeira de um móvel que range. Nem eu nem a minha mãe gostamos de despedidas.
Ontem ao final do jantar ficámos os três ao lume. Junta mais essa madeira. Os joelhos quase a ferver, as pestanas quentes, os olhos baços, o fumo da chaminé passeando-se pela casa, as paredes tornando-se escuras. E eu recordando como se sente o cheiro a lume quando se entra em casa, como cada casa tem o seu cheiro. Eles continuaram, contaram a história de como aprenderam a missa em latim e quando se riam o padre castigava, contaram a história do homem que fugia da polícia, contaram que para se cozinhar um peixe do rio há que lhe retirar o céu da boca. E eu ouvi as mesmas histórias a duas vozes, ambos contando a mesma coisa pelas suas palavras, eu sempre no meio. O peixe é apanhado acima da barragem. (Abaixo da barragem a água é parada.) Chega a pesar doze quilos. (Alguns com mais de doze quilos.) Tem que se tirar os dentes. (Os dentes dão um mau sabor.) Não são bem os dentes, é mais o céu da boca. (Perto das guelras.).
Duas horas depois o meu pai ficou sozinho a remexer as brasas, com um copo de vinho na mão. Eu e a minha mãe dirigimo-nos para quartos contíguos. Ela não se despiu, deitou-se sobre a colcha da cama, apertou o peito com as mãos. Fiquei por momentos a observá-la da porta, pela luminosidade tosca que entrava pela janela. Vi o seu corpo enrolado sobre si mesmo. O que tens?, perguntei. Dói-me aqui, Lena. Reparo que quando me tratam carinhosamente esquecem-se do He, o meu nome perde uma sílaba e ganha afecto. Ela aponta o peito. Sento-me à beira da cama, inclino-me para lhe dar um beijo e sinto o cheiro a sabonete da sua pele. És boa rapariga, espero que não te falte nada. E foi esta a nossa despedida.
Agora já estou longe. O vapor de água da expiração embacia a janela do comboio. Limpo o vidro com a manga da camisola, lá fora o mundo corre paralelo à linha férrea. Continua. A cidade é bem maior do que o meio palmo no mapa que estudei antes de partir. Entretanto é dia, o sol subido envia vectores de luz povoados com pequenos pontos de pó. Sobre o meu colo adormeceu um livro, ficou marcado com o bilhete da viagem.
Quando finalmente é anunciada a próxima estação sinto um arrepio na nuca, aproximo-me da saída, ato o cabelo, enrolo o cachecol ao pescoço, respiro fundo, seguro a mala e desço os degraus até Lisboa. Parece agora tudo tão claro.

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